Superavit: a mistificação do ‘bem comum’
Urbano de Campos — 29 Dezembro 2019
Já foi dito quase tudo sobre o superavit que o Governo prevê no Orçamento do Estado para 2020: que é dinheiro dos contribuintes e devia ser investido em apoios sociais, que (como propõe o Governo) deverá abater a dívida chamada pública para aliviar encargos do Estado, que deveria ser aplicado de forma produtiva, etc. Mas este debate “político-económico” corre o risco de esconder a opção mais funda que determina tanto a decisão do Governo como a concordância do patronato — e o porquê da convergência de uma e outra.
Seria de esperar que o patronato, diante do excesso orçamental (que um jornalista classificou de “lucro” das contas do Estado!..), reclamasse, por exemplo, facilidades de crédito para o investimento privado — como faz a cada passo, queixando-se da avareza dos bancos. Mas não. O capital português prefere que o Estado pague a dívida, porque ela é, na realidade, dívida privada que o Estado “socializou”. É, assim, o trabalho que está a pagar as dívidas privadas, o que representa um bom negócio para o capital. Esta uma primeira razão da convergência Governo-patrões, mascarada de “interesse nacional”.
O capital português prefere que o excedente orçamental sirva para abater a dívida também pelo facto de colocar acima de tudo a coesão dos patrões nacionais com os seus credores estrangeiros: o capital da UE e internacional. Esta coesão é a condição para que os seus negócios prossigam em boa ordem, mesmo que isso aconteça com algum prejuízo da sua prosperidade imediata, isto é, em condições menos favoráveis (pelo menos em teoria) do que se investisse o excedente em seu benefício.
Uma terceira razão decorre do marasmo geral do capitalismo nacional e internacional. Na realidade, produzir mais não é necessariamente sinónimo de mais lucro e mais acumulação de capital. Daí os níveis baixos do investimento — para quê produzir mais se ninguém comprar esse mais? Diante desta realidade, a burguesia portuguesa abdica facilmente de modernizações, inovações, aumentos de produtividade e outros piedosos propósitos (caros e de resultados incertos) a troco de efeitos mais imediatos: gozar da companhia e da protecção da família europeia.
A opção do Governo, finalmente, cai bem aos patrões porque, perante as imensas carências de ordem social bem conhecidas (saúde, habitação, ensino, pensões, transportes, salários, etc.), seria mais um escândalo se os impostos cobrados ao trabalho fossem canalizados para negócios privados — como já acontece, por exemplo, com o resgate dos bancos ou as PPP. E assim, na perspectiva pragmática da burguesia nacional, se o excesso orçamental se há-de “perder” em apoios sociais, que vá, em vez disso, para o alívio da dívida — que é outra forma de favorecer a bolsa patronal.
Antes, pois, de ser discutida como uma boa ou má opção “económica”, a decisão do governo deveria ser apontada como uma decisão política com marca de classe bem nítida: favorecer a prazo o curso dos negócios da burguesia portuguesa mantendo-a em boa relação com os parceiros europeus e internacionais. É esta, de resto, a função de Mário Centeno no jogo a dois tabuleiros que faz como ministro das Finanças e como presidente do Eurogrupo.
Só a mistificação de chamar “pública” a uma dívida que é privada pode fazer parecer que pagar aos credores internacionais é uma medida que serve o “bem comum” de patrões e assalariados.