Sindicalismo, sindicalismo policial, omertà

Urbano de Campos — 2 Dezembro 2019

A manifestação dos agentes da PSP e da GNR de 21 de Novembro trouxe as chamadas forças de segurança para as primeiras páginas. Na sombra ficou a escandalosa absolvição, pouco tempo antes, de onze agentes da PSP que, há cinco anos, em Guimarães, espancaram colectivamente e cegaram um adepto de futebol. Num caso, os sindicatos organizaram o protesto por melhores remunerações e condições “de trabalho” dos agentes; noutro caso, um dirigente de um desses sindicatos fazia parte dos onze inculpados. De que direitos laborais falamos então quando se trata de forças policiais?

Não se pode falar de funções “de cidadania” ou de “segurança de todos nós” sem falar da função repressiva primordial que os corpos policiais têm num Estado como nosso.

Como corpo à parte, profissionalizado, separado da população, não controlado por ela, as polícias que temos são treinadas para verem qualquer acção sua, mesmo de simples manutenção da ordem pública, como um acto de repressão. Como sucede, por exemplo, nas Operações Stop, em que Portugal detém um lamentável recorde de violência e de mortes, ou como aconteceu no espancamento de Guimarães (2014), ou das agressões racistas na esquadra de Alfragide (2015), ou ainda no caso recente do bairro Jamaica (2019).

Repressão e impunidade

E é neste ponto que vale a pena insistir. Como forças repressivas do Estado, as polícias têm de gozar de um alto grau de impunidade. Têm de estar acima do cidadão. Têm de poder agir com violência sabendo que estão a coberto de represálias. Por isso o poder, de uma força geral, e as forças de direita em especial clamam sempre por mais apoio às funções repressivas das polícias, pondo de lado, em termos práticos, qualquer sentido de efectiva vigilância democrática. Chamam a isso “dignificação das forças de segurança”.

O sistema de Justiça actua no mesmo sentido, acabando por ser raros os casos de agentes levados a julgamento e ainda mais raros os de condenações. O respeito por direitos humanos e individuais, a que as polícias deveriam ser obrigadas, é na prática uma pregação que pouco vale, e que só vem a lume, quando vem, depois de cometidos os abusos.

É neste caldo que cresce o racismo, se tolera a brutalidade, se pratica tortura, e se exercita a violência gratuita — porque a própria violência gratuita tem a função de instilar o medo nas populações e convencer os agentes da sua impunidade.

O facto de o caso de Guimarães ter ido a julgamento é, pois, uma raridade, tal como o foi o dos espancamentos racistas na esquadra de Alfragide a seis jovens da Cova da Moura.

Alfragide, quatro anos depois

Este caso acabou, já este ano, com nove absolvições dos agentes da PSP (eram 17 arguidos) e a condenação de apenas um deles a pena de prisão efectiva (por reincidência nos mesmos crimes!) e sete a penas suspensas. Todos foram absolvidos da acusação de racismo e tortura.

Antes do julgamento, uma investigação da Inspecção Geral da Administração Interna (que deveria fiscalizar a acção das polícias) tentou, em 2017, ilibar sete dos 17 acusados, decisão que o Ministério Público e os advogados das vítimas não aceitaram, tão esmagadoras eram as provas. Entre esses sete estava um dos agentes que acabaria condenado na pena mais pesada.

Apesar disto, o juiz responsável pela investigação, José Manuel Vilalonga, foi recentemente promovido a subinspector-geral da IGAI e, nessas novas funções, foi encarregado de investigar um outro caso de agressão policial a um cidadão cabo-verdeano alvo de acção de despejo no bairro 6 de Maio, na Amadora. É difícil não ver nesta promoção a vontade do Estado de ter à frente da IGAI quem defenda os agentes, e não quem os fiscalize.

Lei do silêncio, cinco anos depois

O caso de Guimarães é mais sofisticado. Segundo a acusação, aquando de um jogo entre Boavista e Guimarães, onze agentes do Corpo de Intervenção da PSP do Porto (sem identificação) atacaram um adepto e espancaram-no a cacetete e a pontapé. Um dos acusados, Paulo Rodrigues, é dirigente sindical da PSP. O grupo cercou o indivíduo para que os transeuntes não vissem a cena. O agredido, advogado, ficou cego de um olho, e nunca mais exerceu advocacia.

Os factos da agressão ficaram comprovados. Simplesmente, no julgamento, os onze não prestaram quaisquer declarações protegendo-se mutuamente, num pacto que, entre a máfia ou a camorra dá pelo nome de omertà, ou lei do silêncio.

O tribunal não conseguiu apurar responsabilidades individuais e absolveu por isso todos eles, apesar de o juiz ter verberado a conduta “corporativa” dos agentes. Disse o juiz: “Os autores das bárbaras agressões estão aqui nesta sala, disso não tenho dúvidas”. O advogado de defesa dos agentes, esse, deu-se ao luxo de afirmar que nenhum deles era culpado, apenas tinham tido o azar de ser acusados por… estarem no seu local de trabalho a exercer as suas funções!

Coisas diferentes com o mesmo nome

Portanto: Quando os sindicatos das polícias reclamam melhores salários e progressão nas carreiras, percebe-se. Mas quando exigem melhores condições “de trabalho” (carros, instalações, gás pimenta, algemas, coletes, mais efectivos, etc.) não estão a falar da mesma coisa que os camionistas, os estivadores, os operários da construção civil, os empregados de supermercados, as operárias têxteis, ou quaisquer outros trabalhadores.

E é a confusão acerca destas duas condições tão diferentes que permite a um qualquer polícia-dirigente-sindical, em dado momento, desculpabilizar as agressões policiais cometidas no Bairro Jamaica, ou apresentar-se de conluio com mais dez comparsas num pacto de silêncio para escaparem à Justiça (tudo em defesa da “corporação”) — e, dias depois, encabeçar uma manifestação clamando “Exigimos respeito”.

É ainda esta confusão que permite ao CDS, ao Chega e quejandos apoiar os polícias em protesto — incentivando de facto, a coberto das reivindicações de carácter sindical, o papel repressivo puro e duro dos corpos policiais.


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