Parlamento Europeu destila anticomunismo
Manuel Raposo — 22 Novembro 2019
A proposta de condenação “do totalitarismo” trazida à Assembleia da República, a 15 de Novembro, pela mão da Iniciativa Liberal deu eco à resolução aprovada em Setembro no Parlamento Europeu que condena e põe no mesmo pé nazismo e comunismo. Lá como cá, foi um sinal da convergência política entre a direita e a extrema direita, com a particularidade de, no PE, essa colaboração ter contado com o voto dos socialistas. Entre nós, coube ao CDS o encargo de justificar o mérito da iniciativa, assumindo-a como sua e congregando os votos da direita à extrema-direita.
A resolução do PE — é essa a fonte em que a discussão portuguesa foi beber — tem tanto de patético como de revelador do que vai por essa Europa fora. Por isto nos parece importante olhar com algum detalhe o que foi aprovado em Estrasburgo por mais de 80% dos eurodeputados.
Nem os próprios promotores da moção, certamente, acreditam na associação que fazem entre nazismo e comunismo. Simplesmente, a manobra é-lhes útil num mero plano propagandístico. O texto da resolução deixa perceber que os verdadeiros alvos são o comunismo e a Rússia actual, e que as referências condenatórias do nazismo e do fascismo apenas vêm à baila por um mal disfarçado escrúpulo de “equilíbrio” salomónico. Procurando dar ares de solene declaração de princípios, a resolução não passa de um mero instrumento de combate político. (1)
Sabe-se que a violência que os dignos deputados europeus atribuem ao “comunismo” foi, na verdade, fruto da degradação de revoluções sociais, anticapitalistas na sua origem, que soçobraram num capitalismo de estado inconsequente — mas que, antes disso, fizeram milagres de transformação económica e social de que o capitalismo nunca se mostrou capaz, e de que o capitalismo de hoje, esse então, se encontra a léguas. Basta ver a trajectória de crescente desigualdade que o mundo actual segue sem remédio, frustrando esperanças de milhões de pessoas.
É esse lado revolucionário, infelizmente demasiado curto, que os parlamentares europeus procuraram esconjurar, porque ele ainda hoje oferece um contraste gritante com as injustiças do capitalismo dito triunfante.
Os eurodeputados sabem ainda melhor que, ao contrário, o nazismo veio das próprias entranhas do capitalismo e do imperialismo. Sabem como foi acarinhado e tolerado pelas democracias capitalistas de então (as mesma de hoje) — porque então o totalitarismo guerreiro de Hitler lhes parecia servir para esmagar o perigo maior para todas elas: a URSS, a memória da revolução proletária, os propósitos de construção do socialismo.
Sabem que as democracias de que se consideram filhos só se decidiram a enfrentar o nazi-fascismo europeu (e o japonês a oriente) quando a ambição imperialista destes pôs em causa o domínio imperialista, sobretudo, do Reino Unido e dos EUA, porque até a própria França estavam prontas a sacrificar.
É esta ambição que verdadeiramente condenam no nazismo, não a sua fúria anti-comunista e anti-bolchevista que matou 20 ou 30 milhões de soviéticos. (2)
Antifascismo de conveniência
Nazismo e fascismo são condenados nas suas manifestações particulares (xenofobia, racismo, antissemitismo, incitação ao ódio, etc.) — mas como ressurgências de um passado indesejável. É apenas nisso que a resolução vê “ameaças modernas à democracia”.
Foi esta uma forma hábil de os parlamentares fugirem à condenação das correntes políticas actuais de extrema-direita; aquelas que, no presente concreto, ganham terreno. Sobre isto, nem uma palavra directa.
Ficam assim salvaguardadas as forças de extrema-direita que hoje já governam vários países da UE, as que são guindadas ao poder por alianças com os próprios partidos que se reclamam democráticos, enfim as que ganham alento em consequência das crescentes desigualdades do capitalismo dominante — absolvendo-se assim, de caminho, a ordem política e social que impera na UE.
Provas não faltam sobre o apoio, a familiaridade, com que, hoje mesmo, os novos fascistas são brindados: é a mão estendida ao Vox em Espanha ou à Lega em Itália, é a adopção por Macron, em França, de pontos programáticos da Frente Nacional, é a tolerância para com os neo-fascistas no poder na Áustria, na Polónia ou na Hungria, é a cordialidade diante da ascensão da AfD na Alemanha, é a conspiração dos EUA e da UE com os bandos fascistas ucranianos, em 2014, para derrubar um poder que não lhes era simpático.
Sincero anticomunismo
É muito sintomático, portanto, que o alvo das preocupações dos dignos deputados não seja este fascismo concreto, político, que, sob vestes novas, sem o folclore nazi-fascista de antanho, alastra tanto na Europa como do outro lado do Atlântico. Como é sintomático que a ajuda que os partidos de direita vão dando à extrema-direita, um pouco por todo o lado, não tire o sono aos eurodeputados.
Este alheamento denuncia as fracas convicções antifascistas do Parlamento Europeu, e destaca o seu inabalável anticomunismo.
De facto, ao mesmo tempo que estendem uma capa de protecção à extrema-direita política que levanta cabeça, os parlamentares lançam uma ameaça a todos os movimentos de massas que não se conformem às baias da vida parlamentar — concretamente, uma ameaça antecipada ao comunismo revolucionário que venha a reerguer-se, oxalá, a partir das novas ondas de contestação deste capitalismo decadente.
Legitimar a violência “democrática”
A resolução tem ainda, subjacente, outro propósito: legitimar a violência “democrática”. Pretende dizer-nos que esta democracia (caduca) é o justo meio termo entre “extremismos”, o lugar de toda a virtude. Quer significar que, desde que haja instituições formalmente democráticas, todos os actos do poder ficam legitimados… até novas eleições ou até que as instituições do regime se pronunciem.
Foi a coberto deste manto que a democrática França, já depois de ter sofrido a ocupação hitleriana, praticou todas as barbaridades na Argélia e na Indochina, tal como a ditadura salazarista fez em África. Que os democráticos EUA mataram 20 ou 30 milhões de pessoas por todo o mundo desde o fim da Segunda Guerra para defender “o mundo livre”. Que os democratíssimos britânicos trucidaram milhões de africanos, indianos e chineses. Que o Iraque, a Síria, o Afeganistão, a Somália, a Líbia foram metodicamente destroçados por parcerias entre europeus e norte-americanos. Foi assim que o imperialismo da UE fez o seu baptismo de guerra, na própria Europa, atacando e desmembrando a Jugoslávia.
Neste sentido, a resolução, que passa ao largo destes factos, é também uma tentativa de cobertura “democrática” das acções violentas do imperialismo europeu. Passadas, presentes e futuras.
Decadência dos “valores”
A resolução, talvez acima de tudo, é reveladora da impotência que a UE mostra na defesa dos “valores democráticos” que pretende incensar. Tem de ser vista como uma tentativa canhestra de iludir o descalabro em que se afundam as democracias capitalistas. Um descalabro que marcha em paralelo com a decadência do próprio capitalismo que as tem sustentado.
De facto, vista nos seus aspectos de fundo, a crise actual dá-nos uma radiografia do estado terminal a que chegou a civilização burguesa. O mundo está a viver a falência do sistema produtivo capitalista, que entrou na sua etapa senil. Com isso está em causa todo o edifício institucional que assenta nesse sistema produtivo e nas relações sociais que ele determina.
A crescente dificuldade de reprodução do capital traduz-se, com efeito, numa dificuldade também crescente de reprodução das relações sociais burguesas. Daí a decomposição das instituições, o esvaziamento da democracia, o abandono do estandarte do progresso, o apagamento das grandes crenças burguesas (nação, pátria, família) — que os novos fascismos pretendem reabilitar à força e a golpes de demagogia.
Há outra democracia
Os neofascistas farejam esse descalabro e assumem a vanguarda do extremismo burguês dizendo, em suma, que há democracia a mais. Contam com a complacência da burguesia (ainda) democrática, que segue, no fundo, a mesma linha que as potências capitalistas seguiram diante do fascismo e do nazismo dos anos 30: pactuar a todo o custo. (3)
Ora, o que há no mundo é democracia a menos. Não no sentido que lhe dão as forças reformistas, que pretendem reabilitar as instituições burguesas tentando estimular “os cidadãos” a “participar” nelas, pensando que assim as tornam populares. Mas, sim, neste outro sentido: está por construir uma nova democracia, de outro tipo, de plena constituição popular, liberta da tutela capitalista — o poder da maioria, o avesso da estreiteza da democracia monopólio da burguesia.
É nesta contradição de fundo que se joga o futuro da Europa. A esse respeito, os parlamentares e as instituições europeias só são capazes de discursos vazios ou reaccionários.
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(1) Vários parlamentares denunciaram em declarações de voto a natureza de “propaganda política” da resolução, as “distorções” e “omissões” históricas do texto aprovado, etc., tudo em função da “agenda política” actual da UE.
(2) É de uma baixeza revoltante que uma resolução que, logo à cabeça, ambiciona destacar “a importância da memória europeia para o futuro da Europa” omita descaradamente o papel de vanguarda dos comunistas, o sacrifício de milhões de cidadãos soviéticos e a acção decisiva da URSS na libertação da Europa do nazismo. Por aqui se pode ver em que bases assenta o “futuro da Europa” que a UE constrói.
(3) Numa intencional inversão da História, a resolução não tem pejo em dizer que a Segunda Guerra Mundial “foi o resultado imediato” do pacto de não-agressão germano-soviético de 1939. Omite, convenientemente, todo o alento dado a Hitler e a Mussolini pelas potências ocidentais. Nomeadamente isto: O Pacto de Concórdia e Cooperação (Reino Unido, França, Alemanha e Itália, 1933) deu luz verde ao rearmamento da Alemanha. Mussolini invadiu a Etiópia (1935) e Hitler anexou a Áustria (1938) sem que as democracias ocidentais mexessem um dedo. A Conferência de Munique (Alemanha, Itália, França e Reino Unido, 1938), permitiu a Hitler ocupar e desmembrar a Checoslováquia. Hitler e Mussolini deram pleno apoio a Franco na guerra civil espanhola; França e Reino Unido ficaram-se pela “não intervenção” e reconheceram o governo franquista no início de 1939, ainda a guerra não tinha terminado. França e Reino Unido recusaram sistematicamente a proposta da URSS de um pacto de assistência mútua contra o nazi-fascismo. Tudo na esperança de que Hitler se virasse para Leste e… “desse solução ao problema russo” (Chamberlain). Terminada a guerra, as duas ditaduras ibéricas, aliadas do nazi-fascismo, foram acolhidas no concerto das nações… democráticas, graças ao seu indefectível anticomunismo.