O “governar à esquerda” do PS
Manuel Raposo — 7 Novembro 2019
Mais do que o discurso formal de António Costa no debate sobre o programa do Governo, foi a intervenção da líder parlamentar do PS que melhor deu a perceber o sentido da governação para os próximos quatro anos. Disse Ana Catarina Mendes que será a “classe média” o foco das preocupações do Governo. E explicou: “democracias fortes exigem classes médias fortes”.
Na linguagem do PS, “classes médias” significa a pequena e a média burguesia; e “democracia forte” quer dizer o poder dessas classes médias como estabilizador social — as classes do chamado bloco central — de cujos interesses o PS é interprete.
A declaração, portanto, não é anódina. Pelo contrário, tem um sentido preciso, sobretudo depois da tímida “reposição de rendimentos” que foi a bandeira dos quatro anos passados. Significa isto: depois do descomprimir das tensões sociais geradas pelas barbaridades da troika (que atingiram, mais do que ninguém, o operariado e os assalariados mais pobres); depois de repostos os equilíbrios orçamentais tão caros ao capital europeu, credor da dívida portuguesa — depois disso, chegou a hora de voltar a conferir às ditas classes médias o lugar central que desempenham na arquitectura do regime. Os destinatários estão à vista: funcionários públicos, professores, médicos, enfermeiros, juízes, profissões liberais, pequenos empresários e pequenos capitalistas, e ainda polícias e militares.
Uma outra afirmação, feita na mesma tirada parlamentar, é igualmente significativa pela má consciência que revela: classes médias fortes… “sem nunca esquecer os mais desfavorecidos e assim combatendo as desigualdades”. Ou seja, o operariado e os assalariados pobres que se contentem com a miséria do salário mínimo nacional, aumentado aos bochechos ao longo de quatro anos; que vão esperando por novas melhorias, quando forem possíveis, a conta-gotas como até aqui. O “mais e melhor” com que o PS fez campanha e com que agora propagandeia a próxima governação é isto.
A insistência do PS com as forças à sua esquerda, sobretudo com o PCP, para que marchem com o governo pelo mesmo caminho trilhado nos quatro anos volvidos, tem nestas condições um fito preciso. Acenando com a promessa de prosseguir com as melhorias graduais (“como até aqui”), o Governo visa conseguir que o PCP e a CGTP se encarreguem de manter a calma nas hostes operárias e entre os trabalhadores mais pobres para que lhe sobre espaço político para responder aos interesses das ditas classes médias. Eis o “governar à esquerda” do PS.
O efeito de uma tal via é previsível. Sejam quais forem as melhorias que aí possam vir, se vierem, elas serão muito mais rápidas e notórias para as classes médias do que para a massa operária e assalariada pobre. Esta vai, pois, perder ainda mais peso na escala social.
Dois factores de monta, porém, contrariam esta crença do PS (seguida de perto por BE e PCP) de que pode recuperar métodos da velha social-democracia. Um, é a estagnação em que o capital mundial mergulhou há mais de dez anos, sem vislumbre de saída, que tende a bloquear qualquer real progresso e a tornar precárias quaisquer eventuais melhorias. Outro, é, dentro deste estado de marasmo, a ameaça, que se adensa, de uma próxima crise económica generalizada.
A estagnação retira ao capital as condições materiais que lhe permitiram outrora, em tempo de vacas gordas, redistribuir alguns benefícios às classes trabalhadoras — porque então a acumulação de capital e o crescimento dos lucros dava para isso e muito mais. Foi essa condição que deu base aos partidos da burguesia reformista para encabeçarem a política do grande capital.
Acontece que o “elevador social” que, no mundo capitalista desenvolvido, prometia fazer de todo o operário um membro da “classe média” deixou de funcionar. O aumento imparável das desigualdades, levadas a extremos gritantes, aí está para provar que o mal é de raiz e não se cura com paliativos.
A este quadro geral, acrescente-se a ameaça de nova crise, e ver-se-á que mesmo a escassa margem que o PS teve para “reposição de rendimentos”, para reduzir o défice do Estado e controlar a dívida pública está também ela ameaçada.
Quer dizer, são as próprias condições materiais do mundo capitalista de hoje — a que a nossa dependente e vulnerável economia não escapa — que sapam a base de uma política reformista, mesmo de melhorias graduais muito limitadas, como pretendem levar a cabo não só o PS como as forças parlamentares à sua esquerda.
Como se tornou quase ritual em muitas manifestações, importa hoje reclamar: “É urgente uma política diferente”. Mas agora num sentido bem mais radical.