Nova crise? Velho problema
Manuel Raposo — 5 Setembro 2019
Em tom ligeiro e de passagem — talvez para poderem vir a dizer “nós alertámos” — o primeiro-ministro e o presidente da República referiram recentemente a possibilidade de uma nova crise económica e financeira mundial. Para sossegar os espíritos, fizeram crer que, nessa eventualidade, o país estaria “mais bem preparado” em resultado quer da “maior robustez” das finanças públicas, quer da nova lei do trabalho — como se isso fosse barreira a um vendaval como o que se desencadeou em 2008. São declarações tão tranquilizantes como o são os comprimidos para dormir.
Tranquilidade é coisa que não pode haver, nem cá nem em nenhuma parte do mundo. Na verdade, a “desaceleração” da economia mundial (que na verdade nunca chegou a acelerar desde 2008…) levanta de novo o espectro de uma crise dentro da crise que lavra há mais de uma década. E, como é norma das recaídas, possivelmente mais devastadora.
A culpa que muitos agora atribuem à guerra económica entre os EUA e a China (em 2008 era a “ganância” dos investidores) inverte os termos do problema, uma vez que esta guerra é uma consequência da crise geral em que o capitalismo mundial se arrasta. É esta crise que, em primeiro lugar, acirra a competição entre grandes potências.
Os números que a seguir se mostram (colhidos nos meios de comunicação) dizem respeito aos processos de despedimentos que assolam todo o mundo capitalista e todo o tipo de empresas. Mesmo de forma indirecta, eles revelam a marcha do sistema mundial para um beco sem saída que se pode resumir assim:
1) uma colossal concentração de capital, através de fusões, compras ou simples destruição de empresas; 2) uma consequente liquidação de postos de trabalho que, na esmagadora maioria, não são recuperados, significando uma maciça eliminação de trabalho vivo, produtivo; 3) uma quebra na produção de valor novo que esmaga a rentabilidade do capital e, portanto, a sua taxa de lucro; 4) um agravamento do desequilíbrio entre uma produção de bens tendencialmente sem limite e uma capacidade de consumo global cada vez mais apertada (nomeadamente pelo desemprego).
É neste quadro que se agudiza a competição entre grandes potências, que as grandes empresas (com o apoio dos respectivos Estados) travam duelos de morte e se canibalizam quando necessário, que o proteccionismo ganha novo alento nos EUA, que se esboçam novos alinhamentos mundiais e crescem a corrida às armas e as ameaças de guerra.
Os números falam
A norte-americana Ford (automóvel) anunciou a eliminação de 12 mil postos de trabalho na Europa (8 mil operários, 2 mil empregados de escritório e 2 mil funcionários de agências). Assim distribuídos: Alemanha 5.000, Reino Unido 3.100, Rússia 2.200, outros países 1.600. Razão da medida: o declínio de vendas nos EUA.
A também norte-americana GM (automóvel), em final de 2018 anunciou 14.400 despedimentos em cinco fábricas (8.100 postos de gestão e direcção e 6.300 operários). Uma redução de despesas de 6,5 mil milhões de dólares até final de 2018, incluindo cortes salariais de 15% aos operários de linha, nomeadamente na Coreia do Sul e Canadá.
A japonesa Nissan planeia despedir 12.500 trabalhadores e reduzir a produção em 10%. Associada da Renault até há pouco, a Nissan desencadeou uma guerra com a empresa francesa, acusando-a de querer hegemonizar os negócios comuns, disputa que passou pela prisão, no Japão, do super-gestor de ambas Carlos Ghosn.
A Toyota anunciou em Junho de 2019 o despedimento no Brasil de 840 trabalhadores, de um total de 2.800. E ainda cortes salariais e nos planos de saúde. Causa imediata: a quebra das vendas na Argentina, mergulhada em nova crise económica.
A British Steel, Reino Unido, anunciou falência em Maio de 2019. Um total de 25 mil postos de trabalho estão em causa, 5 mil deles directos. Já em Agosto, também o gigante indiano do aço Tata Steel encerrou uma fábrica no País de Gales, despedindo 400 trabalhadores.
O Deutsche Bank, um dos colossos da banca europeia e mundial, planeia despedir 18 mil trabalhadores (de um total de 74 mil) até 2020, depois de ter já despedido vários milhares desde 2015. Irregularidades, escândalos de corrupção, crédito mal parado fazem parte da “carteira” do banco. A banca europeia, no conjunto, despediu 30 mil em 2019.
A cadeia de distribuição Dia avançou em Fevereiro deste ano para um despedimento colectivo em Espanha de 2100 trabalhadores.
Os “despedimentos do século”, não por acaso, deram-se nos EUA, na sequência imediata de 2007-2008. Só nos principais grandes grupos, foi atingido um total superior a 370 mil despedimentos, assim distribuídos:
City Group (finança) 50 mil, GM (automóvel) 47 mil, Verizon (telecomunicações) 44 mil. Com 35 mil cada contribuiram a Ford (automóvel) mais os grupos retalhistas Kmart, Toys R Us, Circuit City. Seguiu-se a Boeing (aeronáutica) com 31 mil. E, por fim, com 30 mil cada, HP Enterprise (electrónica) e Bank of America (finança).
A nossa precariedade
A uma outra escala, mas não menos significativos, os despedimentos em Portugal têm prosseguido mesmo nos anos mais recentes. Apesar, portanto, da — tão enaltecida pelo Governo! — criação de novos empregos, a destruição de postos de trabalho prossegue, dando conta de uma instabilidade que persiste e que se repercute nas condições de vida quer dos mais novos quer dos mais velhos. Apresentada como sinal de “dinamismo da economia”, esta instabilidade — do lado de quem trabalha e vive do salário — dá nota de um presente precário que uma nova crise pode fazer em estilhas.
Alguns factos.
Números divulgados em Janeiro deste ano (Ministério do Trabalho) mostram que os despedimentos colectivos subiram 3,5% (3.601 trabalhadores) entre 2017 e 2018. Um terço do total coube às maiores empresas que, nesse período, triplicaram os despedimentos. O maior volume (quase 91%) verificou-se na região de Lisboa e no Norte. “Restruturações” foram os motivos invocados, por exemplo, pela Cofaco, CTT, Altice e General Electric.
Meses depois, o mesmo Ministério dava conta de que os despedimentos em Janeiro de 2019 subiram 22,5% quando comparados com Janeiro de 2018. Desta vez, as responsáveis foram as pequenas empresas que assim reflectiam o abrandamento do crescimento económico na viragem de 2018 para 2019. Ao mesmo tempo, o ritmo de criação de emprego também abrandava.
Significativo também é o facto de um inquérito do INE (2018) referir que, na opinião da maioria dos empresários, “despedir trabalhadores continua a ser fácil”. Segundo 47% deles, os obstáculos aos despedimentos são “reduzidos, muito reduzidos ou inexistentes”. Estes factos, de resto, têm sido corroborados tanto pelo mandatário dos patrões António Saraiva (CIP), como pelo seu eco Carlos Silva (UGT).
Entre 2017 e 2018 há a registar, pelo menos, estes despedimentos: Cofaco (indústria conserveira) 167, CTT (correios e finança) 800, Triumph (indústria de vestuário) 500, General Electric (electricidade) 200, Altice (comunicações) 268, Novo Banco (finança) 400, Elevo (construção) 400, MFS (painéis solares) 105, Efacec (electricidade) 200 em 2016-17 mais 21 em 2018, Global Media (comunicação) 100 a 200 mais 150 há 5 anos, Ryanair Faro (transportes) 100.
Para este ano, há planos de despedimento de mais 413 trabalhadores da banca (CGD, NB, Santander e BPI). Com a falência, que parece iminente, da Soares da Costa (construção) — com dez meses de salários em atraso — mais 1.200 trabalhadores estão em risco de despedimento.
Por enquanto, o Governo pode gabar-se de o crescimento económico (mesmo anémico) criar mais empregos do que os que destrói. Mas as nuvens (são os patrões que o dizem) que se acumulam no horizonte próximo com o Brexit e o proteccionismo dos EUA, mais o fraco crescimento mundial e nacional, não auguram nada de bom para os trabalhadores. Não serão seguramente os “tranquilizantes” de António Costa e de Rebelo de Sousa que lhes podem valer.