Joe Berardo: um alvo fácil
Manuel Raposo — 20 Maio 2019
O clamor que se levantou, da esquerda à direita, contra Joe Berardo tem tudo de moralista. Por isso mesmo, não toca sequer no fundo (social, político, económico, de classe) em que um tal fulano se move. O que alarma os defensores das instituições é o facto de a boçalidade do homem espelhar a podridão em que vivemos, e poder suscitar por isso uma indignação que atinja toda a estrutura social e desacredite o regime aos olhos da massa popular.
Não fora o desplante do homem e nada do que agora se ouve estaria nas primeiras páginas. Berardo não é, na verdade, diferente de Ricardo Salgado, de Oliveira e Costa, de Dias Loureiro, de Zeinal Bava e de todos quantos, nos anos em que o marfim corria sem barreiras, encheram as administrações de bancos, manipularam milhões, corromperam câmaras e governantes, violaram planos de ordenamento, venderam e destruíram empresas, lucraram com informações privilegiadas sobre acções, despediram milhares de trabalhadores sem os indemnizar, se abotoaram com salários não pagos e com impostos descontados e não entregues, transferiram milhões para a Holanda ou para o Panamá. O que está a mais em Berardo sobre todos estes é o riso alarve.
Repare-se que são mais as condenações da arrogância do personagem do que as interrogações sobre a cumplicidade de quem autorizou os créditos a Berardo e o protegeu. De facto, três bancos entregaram de mão beijada a Berardo centenas de milhões de euros sem que ele tivesse quase que dar garantias.
E depois, toda a máquina jurídico-legal permitiu-lhe criar e alterar estatutos de empresas, em manobras que se destinavam apenas a subtrair do alcance dos bancos as fracas garantias antes dadas para os empréstimos. Tudo com a óbvia complacência de quem emprestou — gente que, no dizer ufano de Berardo, “não percebe nada disto”.
A verdade é que todo o aparato jurídico que protege a propriedade privada funcionou perfeitamente para o habilidoso Berardo se defender dos credores — evidentemente acolitado pelos melhores homens de leis. Por isso ele diz, não sem razão, que pessoalmente não deve nada… E por isso também os entendidos na manipulação dos fios da lei auguram que vai ser muito difícil fazê-lo pagar o que pediu de “empréstimo”.
Não passa de moralidade comparar as facilidades de Berardo com as dificuldades do cidadão comum que perde a casa por não poder pagar o empréstimo. Moralidade tão básica e inofensiva que a própria direita dela se serve na circunstância. Moralidade, porque todo o mecanismo de que Berardo se serviu está montado precisamente para tirar aos de baixo e dar aos de cima, e não funciona de outra maneira.
Pretender manter tal mecanismo em funcionamento mas exigir tratamento igual para uns e outros é mascarar a natureza de classe da banca, é esconder que a riqueza nacional é detida e manipulada pelas classes dominantes, é esquecer que a propriedade privada existe e que a sua intocabilidade é o pilar da sociedade. Não dizer isto é não dizer nada acerca da origem dos casos Berardo, Salgado, Oliveira e Costa e todos os outros que nem sequer vêm a lume.
Outra moralidade: clamar contra a “promiscuidade” entre política e economia. Como querem que não haja “promiscuidade” se é através do poder político que as classes dominantes detêm as alavancas do poder económico? — e se, vice versa, detendo o poder económico essas mesmas classes ficam em condições de assegurar e prolongar a sua dominação política? Essa ligação íntima entre o poder político e o poder económico é essencial para assegurar a dominação de uma classe social sobre outra — qualquer classe social que seja. Pregar que o poder político deveria ser “isento” no que respeita ao uso a dar à riqueza de um país é pura fantasia. No mundo em que vivemos, ela está na raiz do sistema social capitalista que, sem ela, não poderia sobreviver.
A recusa da esquerda institucional em fazer esta pedagogia perante as classes trabalhadoras inibe-a de atacar a questão pela raiz — que é a ligação indissolúvel entre poder económico do capital e poder político do capital. Numa palavra: a natureza de classe, burguesa, do poder.
Se Berardo chegar a ser “castigado” pelos seus pares de classe será por ter tido a imprudência de pôr na praça pública, aos olhos da arraia miúda, o modo como os negócios se fazem entre burgueses, e dar com isso azo a que o povo se indigne.
Na verdade, o homem, antes guindado à condição de exemplo nacional, é agora verberado apenas pela desfaçatez com que levou a cabo o mesmo que outros fizeram em recato. Por isso, qualquer condenação de Joe Berardo será sempre um lavar de mãos das forças do poder. Executado o bode expiatório, poderá o sistema social e político que o acolheu e criou prosseguir o seu rumo, dizendo-se purificado.
Comentários dos leitores
•leonel clérigo 21/5/2019, 15:39
O QUE PARECE… RARAMENTE É
Manuel Raposo fez, no texto acima e a partir do “recente escândalo" Berardo, um “escalpe” à "frente" burguesa capitalista que nos vem governando desde o 25 de Novembro de 75. “Engrandecida” à custa da bananeira da “Europa Connosco” com raiz alemã escondida, adoptou um lema que supôs eterno: “vale tudo… até tirar olhos”. Enganou-se: a eternidade também se acaba e já devia ter aprendido isso com a “cadeira do Salazar”.
Mas MR não arrisca concluir que tal escândalo não leve Joe Berardo a ser “castigado” pelos seus "pares de classe”. Não partilho dessa dúvida: Joe Berardo não será “castigado” visto que, se isso acontecesse o País ficava sem políticos burgueses “encartados” durante umas quantas gerações.
1 - É certo que o Sr. Joe Berardo, é um “artista menor”, um “homem de mão”: o facto do advogado que o acompanhou o “mandar calar”, diz tudo. Isso sim: nunca se tinha visto tal “desfaçatez” no meio duma audiência de “ilustres”. Teria sido mais simples o Sr. Berardo e o advogado, terem trocado de lugares logo no início.
Também há uma coisa onde não se deve ter dúvidas: o senhor Berardo desempenhou bem o seu “papel” e mais não fez do que seguir a "regra geral do jogo” instituída: deu assim o seu contributo precioso à “distribuição da riqueza” - a “distribuição” entre as “classes ociosas”, as célebres que fazem “desenvolver os Países” - e a mais não era obrigado: também outros fizeram o mesmo mas a amnésia é uma doença terrível apesar de conveniente.
2 - Quando as coisas “esquentam” e “dão para o torto”, é preciso “salvar a face” da Classe. É para isso que servem os Berardos deste mundo, “os elos fracos da cadeia”. Mas não se pense que os Berardos são assim completamente “tapadinhos da Silva”. Os Berardos deste mundo, quando se sentem “encurralados” - não “apertados”, porque o “aperto” faz parte dos “acidentes colaterais” de percurso - têm um “trunfo na manga” que, apesar dos possíveis perigos para a “saúde” e a "psique", podem paralisar qualquer um: pôr, descaradamente, "a boca no trombone”. E aí, como dizem nossos irmãos brasileiros, “a coisa pode ficar preta”.
3 - Não tenho dúvidas que o Sr. Joe Berardo sabe bem das linhas com que se cose. Por isso, não se aflige. Estamos em ano de eleições e tudo isto há-de passar depressa, tal como já passou para outros que aguardam agora mais uns dias de “esquecimento” até serem postos ao fresco e voltarem a receber as “medalhas”… pelo correio. Sabe-se que a nossa “classe média”, sustentáculo do nosso actual “regime”, é assim: gente de fogachos que ferve em pouca água. Dá-lhe forte na “moral” mas passa-lhe depressa. “Amanhã, há-de ser outro dia”...