Notas sobre a greve dos motoristas

Urbano de Campos — 25 Abril 2019

A greve dos motoristas de Matérias Perigosas, conduzida por um sindicato de recente criação (o SNMMP) teve, antes de tudo o mais, o mérito de trazer para a praça pública a discussão sobre muita coisa que se perde no vulgar noticiário, quase sempre desvalorizado e distorcido, acerca das lutas dos trabalhadores. São esses assuntos que as seguintes notas procuram destacar.

Foi uma greve de um sector importante da classe operária, a da indústria dos transportes. Trouxe, só por isso, uma lufada de ar fresco ao movimento grevista dos últimos meses, essencialmente dominado pelas lutas dos assalariados das classes médias, na maioria funcionários do Estado.

Os motoristas enfrentaram o capital privado, e não o Estado. Capital esse organizado numa poderosa associação patronal, a ANTRAM, que a generalidade dos camionistas denuncia como prepotente e com poder (até aqui) discricionário. Os motoristas não podem, portanto, ser acusados — como muitos outros trabalhadores, injustamente, são — de fazerem greve por terem as costas quentes de um emprego seguro, ou de defenderem “privilégios”.

O sindicato levou a luta ao limite das possibilidades legais, sem medo das reacções governamentais e patronais. Pelo peso decisivo do seu trabalho, os cerca de 800 motoristas, mostraram que podiam paralisar rapidamente o país. Não que fosse esse o seu objectivo, mas o facto de disporem dessa arma evidenciou uma realidade sistematicamente escondida: o papel chave que os trabalhadores têm na vida de todos os dias e a força reivindicativa que daí lhes advém.

Não apenas os motoristas, mas muitos outros sectores de trabalhadores têm as mesmas capacidades. Daí a importância, primeiro, da combatividade posta na luta; segundo, da coordenação entre as lutas de diversos sectores. Esta greve mostrou em termos práticos a possibilidade de os trabalhadores encostarem patronato, poder e governo à parede.

A greve trouxe para primeiro plano a luta de classes. Mostrou como o patronato se recusa sempre a aceitar as reivindicações, por mais legítimas, até que o medo de consequências maiores o faça ceder. Todas as diligências anteriores de negociação foram ignoradas pela ANTRAM, tal como o pré-aviso de greve, feito em 28 de Março. Restou aos trabalhadores a acção de força que não hesitaram em usar.

A luta deu a conhecer a miséria salarial (salário-base de 630€) e de condições de trabalho dos motoristas (jornadas de 12 ou 15 horas), o que só pode suscitar a solidariedade dos trabalhadores sujeitos a condições semelhantes. E denunciou ainda a manobra do capital de pagar por fora as horas extra, reduzindo a contribuição patronal para a Segurança Social e balizando a pensão de reforma dos trabalhadores pelo valor do salário base.

A decisão de paralisar o trabalho, com todas as consequências que foram vistas, atirou para cima dos patrões e do governo a responsabilidade de encontrar uma solução em prazo curto. Foi o que sucedeu em apenas três dias de paralisação.

O resultado só pode ser visto como uma vitória deste sector de motoristas. Em três dias conseguiram: que o patronato aceitasse negociar logo a partir de final de Abril; que no centro das negociações esteja um novo acordo colectivo (tendo por base o ACT que foi aprovado em Setembro para o conjunto dos motoristas); e que tudo se resolva até final do ano — quando este tipo de negociações são normalmente arrastadas durante anos pela sabotagem dos patrões.

A luta polarizou todas as forças do poder: patrões, governo, partidos da direita, meios de comunicação. Todos se mobilizaram para minorar os estragos e isolar a luta. Primeiro pela imposição dos serviços mínimos, depois exigindo alargamento dos serviços mínimos, depois pela requisição civil — tudo para esvaziar a greve de efeitos práticos.

Sincronizada, claro, a comunicação social encarregou-se de dar ao caso o necessário tom de catástrofe, de caos iminente, na tentativa de virar a opinião pública contra os grevistas. É o seu papel como braço do poder.

Nenhuma destas ofensivas conseguiu anular o efeito fulminante da greve. E daí a rapidez com que, sob mediação do governo, o patronato se convenceu que tinha de ceder.

Tal como fez nas greves dos enfermeiros, dos estivadores e, em parte, dos professores, a direita procurou tirar dividendos em vários sentidos convergentes: pressionar o governo para endurecer a repressão das greves, a fim de obter ganhos políticos imediatos; arranjar argumentos para uma revisão da lei que limite as possibilidade e a eficácia das greves; incentivar a criação de sindicatos que possa manobrar a seu favor.

Como seria de esperar, o presidente da República meteu a sua colher. Sibilino como sempre, Marcelo veio apelar à “reflexão” sobre a adequação da actual lei da greve a pretexto das “transformações” verificadas “no mundo do trabalho”. Não é difícil adivinhar nisto um convite para dificultar a greve e domesticar as acções reivindicativas de acordo com as conveniências patronais.

Um eco desta mesma ideia está nas declarações do deputado do PSD Adão Silva (Fórum TSF, 24 Abril) que propôs uma “ponderação” da lei da greve porque, diz ele, “o país não pode ficar refém” de “pequenos grupos” e de reivindicações “exageradas”. No mesmo sentido vai o PS, a acreditar nas declarações do deputado Tiago Ribeiro (idem): o PS está disponível para debater mudanças na lei da greve mas só após as eleições de Outubro.

Foi igualmente visível a tentativa da direita de desacreditar o papel da CGTP no conjunto do movimento sindical, por haver movimentos grevistas e sindicatos que lhe escapam. Um comentador da direita (Observador, 24 Abril) falava na “oportunidade de ouro” que, a seu ver, a direita tem (“PSD, CDS, Aliança e Iniciativa Liberal deviam estar atentos”) para captar eleitores tradicionalmente afectos aos partidos da esquerda.

É claro que a “atenção” da direita só lhe dará frutos se a radicalidade da acção dos trabalhadores não for acolhia pela esquerda e pelas organizações sindicais. Aí, sim, a esquerda estará a dar trunfos à direita.

A grande vantagem da esquerda e do sindicalismo de classe está nisto: na medida em que as lutas atinjam directamente o capital, a direita e a extrema direita não têm campo de manobra para se aproveitarem das greves mais combativas.

A direita e o patronato estão numa situação contraditória: ao mesmo tempo que tentam minar a hegemonia da CGTP — porque a fragmentação sindical lhes convém — temem os efeitos radicais de lutas como a dos motoristas.

Para a direita estabelecida e para o patronato, a concertação social conseguida através do Conselho Económico e Social tem sido um biombo “democrático” útil para fazer valer o essencial dos seus interesses. Se, porém, se multiplicarem acções bem sucedidas como a dos motoristas, de pouco valerá o biombo. E é por isso que se levantam vozes contra os movimentos “inorgânicos”, sendo, no entender do patronato, “orgânicos” os que estiverem domesticados.

É um susto para o patronato ter de enfrentar a luta de classes na sua crueza e na sua imprevisibilidade. Mas esse é um trunfo dos trabalhadores, saibam eles coordenar-se e apoiar-se uns aos outros.


Comentários dos leitores

leonel clérigo 30/4/2019, 11:33

SAMBA DO “APPROACH” (1)
Não era muito difícil antever que a “greve dos motoristas de materiais perigosos” não iria, afinal, ter tão fácil “final feliz”: só a Páscoa (mais as suas “férias”) puderam estar na origem de tão retumbante milagre que levou a pensar que o “patronato luso” estaria, finalmente, interessado em “arregaçar as mangas” e dizer “adeus ao subdesenvolvimento”.
Erro crasso: quem já nasceu subdesenvolvido jamais se irá “endireitar”…O Desenvolvimento do País terá que passar por outro lado. E vamos testar, no “final” deste ano, onde pára a nossa “esperteza” que se espera não ser saloia.
O senhor Saraiva - que dizem representar o patronato da “nossa industria” brilhante - parece ter sido agora claro na cantiga: “aumentos” sim… mas não “à Lagardère”. “O País não aguenta…”.
Efectivamente o País tem as “costas largas”: só aguenta “empregar” o “lucro” em “iates de luxo" para andarmos todos a passear no Mediterrâneo. Mas cuidado: há por aí muito vigarista à solta…E lá se vai o “investimento industrial” e os célebres “aumentos de produtividade” em embarcações de luxo que os fazem disparar…nos países que as produzem.
(1)
Venha provar meu brunch
Saiba que eu tenho approach
Na hora do lunch
Eu ando de ferryboat
Zeca Baleiro (Refrão)


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