Faltou dizer: “Je suis Macron”

Manuel Raposo — 20 Abril 2019

O incêndio da catedral de Notre Dame deu campo a um exercício exaltado e enjoativo de nacionalismo francês e europeu. O “símbolo da cristandade” medieval serviu para glorificar, de modo sub-reptício, o sentido imperial da Europa do século XXI, de que a burguesia francesa não abdica. E como esse símbolo não se pode perder, Macron declarou logo — no seu tom caricato de imperador menor — que dentro de cinco anos teremos uma catedral “ainda mais bela”!

De imediato, os grandes magnatas da França, abriram cordões à bolsa e despejaram centenas de milhões para a reconstrução. É outra maneira de salvar Macron e o regime, atolados como estão numa decadência sem retorno — ou, se se quiser, a arder sem que haja bombeiros que lhes valham.

Uma grande comoção nacional foi o que o governo francês, com a pronta colaboração da grande burguesia, quis promover — para apagar, por uns tempos que seja, a revolta da população contra uma vida que se degrada a cada dia. Não faltaram apelos à “união nacional”, tentando com isso coagir os protestos dos Coletes Amarelos, que não param desde Novembro, e tentar travar o descrédito do governo e do regime entre a população.

Por cá também, o mesma choraminguice nas TVs, na imprensa, em todos os comentários. Incapazes de um pensamento distanciado, sem qualquer senso das proporções, reproduziram apenas, em tom de tragédia própria, o tema que lhes foi fornecido pelas centrais internacionais que moldam a “opinião pública”. Foram dignos exemplos contemporâneos do personagem de Eça de Queirós que, diante das notícias chegadas a Lisboa sobre a Comuna de Paris, exclamava indignado algo como isto: “Minha querida Paris, ainda o mês passado lá estive com a minha mulher”.

Do outro lado do Atlântico, os apaniguados fascistas de Stephen Bannon (o ex-conselheiro de Trump empenhado na criação de uma internacional fascista), não tiveram pejo de lançar a atoarda de que se tratou de um atentado islâmico, com óbvios propósitos de estimular a cruzada anti-muçulmana e anti-imigrantes.

Mas toda a gente fica a perceber, se quiser, como é fácil à grande burguesia abrir mão de centenas de milhões para preservar os símbolos do seu poder ao mesmo tempo que recusa responder às necessidades sociais da grande maioria.

Como lhe é fácil manipular uma comunicação social inteiramente domesticada e vendida, no sentido de ampliar e distorcer factos em favor das manobras políticas do momento.

E também como é gritante o contraste entre o choro desabalado dos média, das instituições políticas e da burguesia por uma catedral ardida e o silêncio que abafa os morticínios em que a França e a UE têm colaborado por esse mundo fora, desde África ao Magreb e ao Médio Oriente. Os escombros da Síria, da Líbia ou da África central, os milhões de pessoas mortas, deslocadas e com as vidas para sempre desfeitas não se comparam, na óptica do imperialismo francês e europeu, à “nossa” querida Notre Dame.


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