EUA em busca de “nova ordem” imperialista
Manuel Raposo — 28 Março 2019
A caminho dos três anos de mandato, já não se pode dizer que Donald Trump seja um simples aventureiro guindado à presidência da maior potência imperialista do mundo por um desvario dos eleitores ou um golpe nas urnas. O seu percurso, espalhafatos à parte, tem mostrado o propósito firme das classes dominantes norte-americanas (pelo menos uma parte determinante delas) de se imporem ao resto do mundo de um modo diferente do que tinham feito até aqui, na tentativa de recuperarem a hegemonia em perda.
A forma sistemática como o governo de Trump tem actuado na cena internacional, bem como internamente, nada tem de errático se olharmos, não ao modo pessoal como ele conduz as decisões políticas, mas à sua resultante prática.
Na frente externa
Os EUA romperam o acordo com o Irão, visando directamente a principal ameaça a Israel e indirectamente os concorrentes europeus, a Rússia e a China. Apostam abertamente nos cães de fila Israel e Arábia Saudita, pondo fim à ilusão de que os EUA seriam um árbitro no Médio Oriente.
Ameaçam os parceiros europeus da Nato de os deixar para trás, mas, longe de a desprezarem, procuram estender a aliança à África (como Obama) e à América Latina. Sustentam de modo descarado o Brexit com o propósito evidente de dividir e enfraquecer a União Europeia. Apoiam sem grandes disfarces a formação de uma internacional fascista na Europa através da acção militante do ex-conselheiro estratégico da presidência Stephen Bannon.
Revogaram acordos comerciais multilaterais para imporem aos parceiros de ontem a sua vontade unilateral. Retiraram-se de organismos da ONU e desvalorizam a própria organização (na linha iniciada em 2003 com a guerra contra o Iraque), para não terem que se sujeitar, nem sequer formalmente, a regras comuns do direito internacional. Rasgaram o acordo de Paris sobre o clima, para que o capitalismo ianque fique com mãos livres para a exploração selvagem de recursos e faça ainda render velhas tecnologias.
Apostam na subversão dos regimes centro e sul-americanos progressistas não só para fazerem da América Latina de novo o quintal dos EUA, como sempre procuraram, mas também para tentarem quebrar as pernas aos chamados BRICS, atingindo assim a Rússia e a China.
Perderam, é certo, a guerra na Síria e parecem em vias de perder o domínio da questão coreana. Mas pode ser esse o preço de uma potência em declínio se reforçar nos seus redutos mais seguros.
Na frente interna idem
Também no plano da política interna Donald Trump leva a cabo uma acção persistente de reforço da extrema-direita, procurando um poder sem oposição e promovendo nomeadamente a supremacia branca. Por tentativas, tem testado a resistência das instituições estatais ou da comunicação social, ou dos valores morais dominantes. E, sempre que encontra terreno favorável, impõe a sua via ultramontana, como no caso das nomeações de extrema-direita para o Supremo Tribunal Federal; desrespeita normas democráticas e chama a si mais autoridade; desacredita quem quer que nos média se lhe oponha; faz a apologia dos valores morais e cívicos mais retrógrados.
Neste processo, apela de modo calculado aos elementos neofascistas das classes dominantes e da população. E, naturalmente, concede às classes dominantes muito do que elas querem: menos impostos, menos limitações legais, acesso sem restrições a recursos naturais, roubo das terras dos povos indígenas que restam.
“Nova ordem”
No centro desta vasta manobra, fica visível — se não olharmos apenas para a figura de Trump mas para todo o séquito que o ampara e define a sua política — o propósito de atacar os concorrentes internacionais mais poderosos, tanto no plano económico, como nos planos político e institucional. E também o propósito de encaminhar os EUA e o mundo para um sistema de regimes sociais de que, em limite, as liberdades colectivas e individuais sejam varridas.
Tornou-se evidente que os EUA de Trump procuram instaurar uma “nova ordem” internacional, como aliás Bush e os seus apaniguados declararam nos idos de 2000. Percebe-se esta busca se entendermos que o imperialismo norte-americano se sente hoje limitado nos seus movimentos e nas suas ambições pela teia de relações internacionais que ele próprio promoveu na sequência da segunda grande guerra.
O crescimento de concorrentes de monta como a UE, o Japão e, sobretudo, mais recentemente, a China — bem como, noutro plano, o reerguer da Rússia — enfraqueceu o poderio norte-americano, não apenas económico, mas também político. Aquela teia, que num primeiro momento criou o ambiente para a hegemonia dos EUA no mundo ocidental, é hoje sentida pelo capital imperialista como uma camisa de forças.
Novos aliados
Romper estes equilíbrios, tornados desfavoráveis pela própria evolução histórica, é então um fito do imperialismo norte-americano e não um simples produto da cabeça de Trump. Assistimos, pois, a uma viragem na estratégia do imperialismo dos EUA, que se consolida com Trump, e não a um intervalo cómico. E esta viragem é mais evidente quando se percebe que, em diversos casos, a acção de Trump traduz a afirmação de tendências anteriores apenas esboçadas.
Os EUA, evidentemente, precisam de novos aliados para esta nova cruzada. Tais aliados só podem ser encontrados entre as forças mais retrógradas e mais dispostas à violência de classe do capitalismo internacional. No Brasil, na Colômbia, na Europa de Leste, nas forças de extrema-direita europeias estão os aliados naturais dos EUA de hoje. Os EUA tendem assim a tornar-se o epicentro de uma onda que procura subverter o que resta das democracias capitalistas (já de si esvaziadas e, por isso, vulneráveis) da Europa e do resto do mundo.
Falência das democracias capitalistas
Este abandono de preceitos democráticos por parte de uma potência imperialista que, em dada época, deles se apresentou como o maior paladino, é mais uma prova da decadência do capitalismo mundial no seu conjunto, não admirando que a ponta de lança desta “renegação de princípios” seja, justamente, o seu representante mais acabado.
As democracias capitalistas dos últimos 70 anos puderam manter-se graças ao ambiente de prosperidade económica do segundo pós-guerra. As classes dominantes aperceberam-se, de há 30 anos para cá, de que não vão poder recuperar a prosperidade que lhes permita pagar o bem-estar da massa trabalhadora e assim comprar o sossego social. A estagnação e o declínio em que o mundo capitalista entrou de modo irreversível é a certidão de óbito dessas democracias. Resta às classes dominantes a violência.
Nada a esperar
Não é de esperar, portanto, nem que as classes dominantes norte-americanas queiram descartar-se de Trump ou do trumpismo (a menos que alguém menos risível se apresente para cumprir a missão) nem, muito menos, que uma nova figura na presidência vá alterar o essencial do rumo agora iniciado. A hipótese séria de um segundo mandato de Trump, certamente então mais seguramente acolitado desde início, representará, pelo contrário, a consagração e a consolidação desse rumo.
Se já eram, desde o segundo pós-guerra, a cabeça do imperialismo internacional, depois desdobrado na forma de uma tríade, com o Japão e a UE — com tudo o que isso representou de sofrimentos para os povos do planeta —, agora os EUA concentram em si, às claras, o que de pior se pode esperar de uma potência imperialista. Abatê-la é tarefa fulcral do nosso tempo.
Tudo a esperar
Nesta sua empresa pela sobrevivência, o imperialismo norte-americano é forçado a abalar os fundamentos da ordem que ele próprio instaurou e à volta da qual o mundo se organizou nas últimas décadas. Significa isto que, através das ameaças que impendem sobre os povos, está a abrir-se uma época de desarranjo de todo o sistema imperialista, uma vez que é a coluna vertebral desse mesmo sistema que se desagrega. E, com isso, abrem-se condições para um novo ciclo revolucionário à escala mundial.
Tudo dependerá da resposta. Contará, acima de tudo, o desenvolvimento das lutas de classe da massa trabalhadora contra um capitalismo em falência, o combate às forças fascistas em cada país e a todas as formas de imperialismo, a busca de independência dos povos dominados pelas potências imperialistas — e, particularmente, a capacidade dos trabalhadores norte-americanos de vencerem, na frente interna, a deriva fascista das suas classes dominantes.
Comentários dos leitores
•afonsomanuelgoncalves 31/3/2019, 12:58
Com a eleição de Trump, a família democrática do imperialismo americano viu-se repentinamente e sem esperar desalojada do poder administrativo desta poderosa potência e chocada com o resultado eleitoral tentou estonteada e em vão dar a volta recorrendo à denúncia de uma fraude eleitoral para destronar esse estouvado Presidente. Os EUA são desde o fim da 2ª Guerra o imperialismo mais agressivo e violento do Mundo como muita gente sabe. No entanto há a salientar o eclipse surpreendente e inexplicável da táctica da URSS ao promover a coexistência pacífica entre o imperialismo e o "socialismo" proposto pelo governo da URSS, que apesar desta notável contradição foi quase totalmente aceite e passou despercebida nos intelectuais da pequena burguesia próximos da ideologia marxista. de facto, a cumplicidade desta "aliança" não suscitou perplexidade na construção de Muro de Berlim em Agosto de 1961 nem o voto favorável da URSS sobre a entrada dos capacetes azuis no Congo contra a vontade de Lumumba no mesmo ano.
O proletariado europeu ainda convicto da grande energia da URSS permaneceu fiel à sua 2ª Pátria e o enorme desenvolvimento da Europa pós-guerra trouxe a este espaço do planeta as condições necessárias para o desenvolvimento do bem estar ligados ao pensamento e à acção: partidos políticos, sindicatos, eleições livres constituíram o triângulo deste espectro que a burguesia entendeu como necessária exportar em nome das liberdade e dos direitos humanos. No entanto a exploração do trabalho assalariado era imprescindíivel sob a batuta da propriedade privada e lá estavam os partidos da burguesia para os garantir. Sol de pouca duração, a contradição entre capital e trabalho acentuou-se e a crise económica para a superar recaía sem dó nem piedade no mundo do trabalho e com esta realidade os partidos tradicionalmente triunfantes nesta 1ª fase volatilizaram-se como a água em vapor. Parece pois, que novas batalhas terão que emergir e dar início a uma nova fase revolucionária.
•leonel clérigo 1/4/2019, 17:49
…PERSONAGENS EM BUSCA DE AUTOR
Ao ler o texto de Manuel Raposo e o Comentário de Afonso Gonçalves (AG), não posso deixar de colocar uma questão que julgo de todo o interesse: qual será o papel do Proletariado Norte-Americano e Europeu no desenrolar da grave crise que ameaça já a dominação do Capitalismo “Central” sobre a sua “Periferia”?
1 - O entendimento que geralmente se tem do Imperialismo, sempre se assemelhou ao que se tem das “bruxas”: muito boa gente “não acredita na sua existência”…mas lá que elas existem, existem!
E como “mostra” o Imperialismo essa sua existência? A que julgo estar hoje no centro da mesa, mostra-se no seu persistente bloqueio ao “Desenvolvimento” da grande maioria da População Mundial. Esta contradição vem provocando crises sociais de vária ordem - as ditas do “terrorismo”, do “assalto às fronteiras”, são as mais “visíveis”… - que se espalham pelo Planeta e onde algumas delas já extravasam a “periferia” e instalam-se no “Centro” do Imperialismo: principalmente nos USA, na Inglaterra e França. (1)
2 - Só um pouco de História: no final da 2ª Guerra, o Capitalismo permitiu-se pôr ordem na sua “capoeira” ao subir ao poleiro o “galo” estadunidense. A chave dessa “ordem” - como sempre - estava na “Economia” e, no Hotel Mount Washington em Bretton Woods, tudo (ou quase) foi cozinhado: “todos” os países “industriais” - e só eles - produziam a “indústria” tida de “topo” (ou com boas taxas de lucro) e o resto do mundo (as velhas e numerosas colónias ou semi) não só os forneciam de “matérias-primas” (minerais e agro-pecuárias), “mão-de-obra”, além de “mercados” para absorver a sua produção. Como o maior defensor desta “ideia” era Keynes, o mundo passou a reger-se pelo “Bem-estar” Keynesiano enquanto a Escola Austríaca ficava na “reserva” para o que desse e viesse.
3 - Esta solução só foi possível com o “consentimento” do Proletariado Central e, sobretudo, da sua Classe Operária. Uma firme “aliança de classes” se instalou entre a grande Burguesia Imperialista/Monopolista Central e o seu Proletariado Industrial.
Se a preparação da 2ª guerra consagrara um “bruxo” - o “milagroso” banqueiro alemão Hjalmar Schacht - Keynes era agora o novo “milagreiro”: como era possível, numa Europa destroçada, manter boas “taxas de lucro” com “salários” de “Bem-estar”? Simples: lá estava o 3º mundo para “pagar a factura”. Por isso, na obra de Keynes, será ele o grande esquecido.
N-ao será difícil ver que esta “aliança” só será “viável” até o 3º Mundo começar a dizer “Basta!”, coisa que demora o seu tempo. Mas até lá, irá ela permanecer de “boa saúde”.
4 - Chego ao ponto que coloquei acima: não me parece - confundir desejos com realidades é “perigoso” - que vá haver, nos tempos próximos, muita turbulência no “Centro Imperialista” com origem na sua Classe Operária e no seu Proletariado. Tudo irá depender das classes trabalhadoras do dito “Terceiro mundo” e do tempo que levar a dizer, com voz grossa, “alto aí!” à sua “sobreexploração”. Em minha opinião, são estas classes “o grande Protagonista” dos tempos que correm e, por isso mesmo, nunca se viu tanto “frenesim” - como se vê hoje com a Venezuela - por parte do Imperialismo “unido” e do seu “guarda-chuva” global: a “classe média” do “centro” e da “periferia”.
(1) - Nos USA, manifesta-se na divergência de “estratégia” das fracções da classe dominante para conservar o domínio sobre a periferia: no essencial, “paninhos quentes” ou “mocada”; no Reino Unido o “Brexit” e a importante escolha dos “aliados” preferenciais; na França, no modo de aprofundar o Imperialismo - ainda paralisado com a herança dos campos de 1789 - e recuperar (?) o estatuto de grande potência.