O fascismo sob protecção democrática
Manuel Raposo — 22 Março 2019
O atentado que matou 50 muçulmanos na Nova Zelândia parece ter deixado desconcertada a maioria das autoridades internacionais e dos comentadores de serviço, que sempre vêm a terreiro para nos dizer como devemos entender as coisas. Habituados a apontar o dedo ao “radicalismo islâmico” ou à “extrema esquerda”, viram-se na posição incómoda de ter de explicar o acto de um declarado fascista, admirador de Donald Trump.
Começando pelas condolências oficiais. Todos os governos viram a Nova Zelândia e a sua democracia como a vítima do desmando fascista — mas não necessariamente a comunidade muçulmana propriamente dita (com excepção da chanceler Merkel, vá lá saber-se porquê). Pelos vistos, aqui já não foi o “modo de vida” dos muçulmanos que esteve debaixo de fogo, como não se cansam de dizer acerca do “nosso modo de vida” quando o terror desaba sobre europeus ou norte-americanos.
O sinal fica dado: segundo a verdade oficial, não foi a democracia neozelandesa que deu guarida a um fascista e permitiu que ele matasse 50 muçulmanos; foi a democracia neozelandesa que se viu atacada na sua tolerância, sendo os mortos muçulmanos os alvos de circunstância de um “extremista”.
Depois, as interpretações. Foi tónica geral nos comentários portugueses e estrangeiros (de onde emana esta internacional da opinião oficial?) insinuar o ataque de Christchurch como “uma reacção” do extremismo branco ao extremismo muçulmano. Portanto, com a implícita atenuante de ser uma resposta, ou mesmo uma legítima defesa.
Ora, no caso dos atentados islâmicos, nunca eles são vistos como “reacção” ao colonialismo e ao imperialismo ocidental que, pelo menos há 200 anos, manda e desmanda no mundo árabe e muçulmano — saqueia recursos, depõe governos, promove guerras e invasões, assassina dirigentes, praticando por estes meios um terror em escala maciça. Para europeus e norte-americanos parece que a história começou em Setembro de 2001.
E não bastando isto, acrescentam-se as explicações ditas psicológicas: o fascista de Christchurch é afinal um desequilibrado, um homem “claramente descompensado” (sic) que não entende as regras da convivência democrática… O móbil político, o fundo ideológico do crime, aberta e profusamente publicitados pelo terrorista, as suas ligações às redes fascistas internacionais, são apagados — e passam, de acordo com a verdade oficial, à condição de simples pretextos de um louco, a acto de um “lobo solitário”.
Depois, o que fica escondido. Ambos os “extremismos” são obviamente condenados pelos comentadores, em nome do “justo centro”, da “democracia”, etc.. Mas ficou a saber-se, pelas pontas soltas das notícias, que o terrorista “cristão” não estava registado pela polícia, apesar de ele próprio fazer alarde, desde há muito, pelas redes sociais, do que pensa e das suas intenções criminosas. Apesar de ter viajado da Austrália para a Nova Zelândia. Apesar de ter preparado meticulosamente, durante meses, os passos que iria dar e exibido nas redes sociais as armas que iria utilizar. Perfeitamente à vontade, deu-se ao luxo de transmitir em directo, durante uns bons vinte minutos, o morticínio e de se deslocar com armas e bagagens de uma para outra mesquita sem que nenhum polícia se lhe atravessasse no caminho.
De olho virado para o “extremismo islâmico” (e para a “extrema-esquerda”), a polícia neozelandesa, bem como a australiana, ignoraram o fascista e os seus planos. Mas a isto chama-se, com propriedade, não apenas ignorar, mas dar cobertura à extrema-direita.
O caso, de resto, está longe de ser exclusivo da Nova Zelândia ou da Austrália. Na verdade, o extremismo fascista não é visto por nenhuma democracia ocidental no mesmo plano de perigo que a “extrema esquerda” ou o “islamismo”. A burguesia pode não desejar o fascismo, mas não deixa de ver nele um recurso, mesmo que seja de última escolha, para assegurar o poder, a ordem e o bom curso dos negócios.
Exemplos não faltam: o crescimento impune das forças fascistas (baptizadas com nomes brandos, como “populistas” e “nacionalistas”) nas democracias europeias, nos EUA, na América Latina; as alianças de forças políticas tradicionais com os novos fascistas, inclusive para formar governos, reconhecendo neles parceiros de poder; a tolerância da União Europeia para com regimes antidemocráticos de países membros; a apologia da supremacia branca e da violência armada por figuras a que é dado destaque, como Trump ou Bolsonaro; a protecção ao extremismo religioso cristão acoitado em seitas de toda a espécie.
É este caldo que alimenta fascistas como o de Christchurch e os fazem sentir-se incentivados a agir da forma mais brutal.
O formalismo democrático que o poder invoca a cada passo para tolerar os grupos fascistas, na verdade, assegura protecção ao novo fascismo. E isto, longe de ser um mérito, é uma marca da falta de conteúdo verdadeiramente democrático dos regimes burgueses. O afastamento dos trabalhadores e da massa do povo das alavancas do poder é justamente o que permite às democracias burguesas conferir direito de cidadania às forças fascistas.
Uma democracia que faça jus ao nome — isto é, que não apenas espelhe periodicamente a opinião dos eleitores, mas seja expressão do poder efectivo da maioria do povo — só pode olhar as forças fascistas como elas são: pontas de lança do mais extremado poder burguês, dispostas a submeter a massa popular ao seu arbítrio. E daí a legitimidade de lhes vedar o direito e os meios de fazerem uso das liberdades para se afirmarem e se organizarem.