Sobre as greves dos últimos meses
Manuel Raposo — 25 Fevereiro 2019
A agitação que desde há meses tem levado à greve as classes médias assalariadas — enfermeiros, professores, médicos, polícias, guardas prisionais, juízes, outros funcionários públicos — todas elas de algum modo dependentes do Estado, contrasta com a quietude quase geral da massa operária e proletária.
Estas classes médias, que integram a pequena burguesia assalariada, têm levado as suas lutas a graus elevados de persistência não por estarem em piores condições que a massa operária e a maioria dos proletários, mas sobretudo por sentirem a ameaça ao seu estatuto, a queda na escala social, os riscos de pauperização e proletarização que os anos de austeridade lhes trouxeram. Têm a seu favor o facto de estarem protegidas do despedimento, de integrarem vastos serviços públicos vitais e de poderem paralisar a máquina estatal, o que lhes confere uma força política considerável.
A massa operária e proletária vive noutras condições. Sofreu de modo muito mais agudo os efeitos da crise e das políticas de austeridade: desemprego maciço, trabalho precário, cortes salariais, perda de apoios sociais básicos. Permanece, no essencial, na situação herdada dos tempos da Troika e constitui a maioria dos casos de pobreza e miséria do país. Seria de esperar que, nas condições políticas criadas em 2015, mostrasse uma disposição de luta à altura de, pelo menos, recuperar o que perdeu desde 2010-2011. Mas não o tem feito, salvo casos pontuais que não alteram o panorama da luta social. A resignação pesa, nomeadamente pelo hábito de conviver com a exploração e com a discriminação como nenhuma outra classe da sociedade. Mas pesa sobretudo a ameaça de despedimento, o resvalar para o trabalho precário e desqualificado, a concorrência entre proletários que o capital estimula.
O contraste das reivindicações fala por si. Vários sectores profissionais daquelas classes médias conseguiram actualizações salariais, recuperaram pelo menos parte do tempo de carreira, voltaram ao horário de trabalho de 35 horas e obtiveram, no caso dos funcionários públicos, um salário mínimo mais elevado que o nacional.
As exigências da massa operária têm tido outro perfil: tentar evitar o encerramento de empresas e os despedimentos, reclamar protecção judicial para garantir subsídios de desemprego, recuperar salários em atraso, obter alguns tímidos aumentos salariais, incluindo o do salário mínimo, integrar trabalhadores precários.
O “efeito de arrasto” das reivindicações dos assalariados médios sobre as dos demais trabalhadores não se deu porque na verdade se trata de dois mundos diferentes. Pelo contrário, o resultado tende a ser um aumento das diferenças na escala social entre uns e outros. O poder sente-se tanto mais à vontade para satisfazer as classes médias quanto menos a classe operária e os proletários levantem a voz.
As organizações sindicais, tão empenhadas na defesa e na condução das lutas dessas classes médias, não se podem gabar de estarem a cumprir a sua missão no que respeita à massa operária e proletária. Nem a esquerda parlamentar se pode vangloriar de ter invertido o rumo no respeitante à “recuperação de rendimentos”, que, como vemos, tem privilegiado sobretudo os assalariados pequeno burgueses, particularmente funcionários do Estado.
As lutas actuais são, por tudo isto, facilmente aplaudidas pela direita — e até apoiadas e estimuladas. Nalgumas delas, a direita vê mesmo a oportunidade para forjar sindicatos que lhe sejam afectos, como no caso dos enfermeiros, com o propósito confessado de “quebrar a hegemonia” da CGTP. A direita aplaude estas lutas não só porque lhe são úteis na disputa partidária do momento, mas também porque se trata de classes que compõem a sua base social.
Virar esta situação implicaria inverter papéis. Como a história das últimas décadas bem mostrou para quem não a queira esquecer, é a luta da massa operária e proletária que tem a capacidade de arrastar as demais classes, de tirar espaço à direita, de fazer vergar o patronato, de abrir vias de progresso efectivo para a população trabalhadora.
Não é certo, portanto, que a onda de lutas dos últimos meses se traduza num reforço da esquerda — nem na balança política geral, nem nas próximas eleições.