Portugal com a UE na segunda linha do golpe

Manuel Raposo — 28 Janeiro 2019

Percebe-se agora melhor o sentido da recusa do presidente da República e do Governo em estarem presentes na Venezuela, no passado dia 10, na tomada de posse de Nicolás Maduro: sabiam do golpe que estava em marcha, orquestrado pelos EUA e acolitado pela União Europeia. E percebe-se também melhor o alcance de Marcelo (e o Governo através dele) ter prestado apoio sem reservas, dias antes, ao inqualificável Bolsonaro: o novo regime brasileiro é peça-chave do golpe contra a Venezuela.

Para além de todo o estendal de ameaças e pressões sobre a Venezuela, ao longo de anos, o que levou os EUA a este súbito impulso de agora-ou-nunca foi, seguramente, a incapacidade demonstrada até aqui pela oposição interna venezuelana em suplantar o apoio popular de que o chavismo ainda beneficia. É claro que há muito descontentamento com as condições de vida, em contínua degradação, e as manifestações contra Maduro dão conta disso. Mas há também do outro lado da barricada — facto escondido pelos média ocidentais — um amplo apoio popular entre as massas mais pobres, resultante não só das medidas de combate à pobreza dos últimos vinte anos, mas também da liberdade de organização popular que o regime estimulou. É este impasse que os EUA querem romper, procurando fazer pender a balança para o lado da burguesia venezuelana, à força de uma intervenção militar.

EUA: atacar a partir de fora

Os vinte anos que o regime chavista já leva de vida não se explicam pela demagogia de uns quantos líderes ou pela tutela militar. Além das nacionalizações de sectores económicos fundamentais e de medidas políticas favorecendo as camadas pobres, a acção das massas criou uma rede de organizações de base popular, entre elas milícias armadas, activas nos bairros e nos locais de trabalho. Isto é espelho de uma luta de classes politizada, travada a partir de baixo. A burguesia venezuelana perdeu assim muitos dos meios de acção e dos privilégios de que antes dispunha, ficando politicamente enfraquecida. É este minar do poder da burguesia que atormenta as potências imperialistas, e que explica boa parte da ineficácia da oposição venezuelana, por mais apoios que tenha recebido dos EUA ou da UE.

A oposição interna venezuelana sempre contou com a ajuda, de toda a espécie, por parte dos EUA. E isso, que é visível para qualquer um, retira-lhe crédito entre grande parte da população, que vê aí os traços do “compradorismo” de antigamente. As divisões internas dessa oposição, em que EUA e UE tanto apostaram, são o retrato do oportunismo que tem animado todas as suas facções.

Falhada a acção a partir de dentro, como pretenderam até recentemente, os EUA empreenderam às claras o ataque ao regime a partir de fora, fazendo da Assembleia Nacional e de Guaidó os seus mandatários internos e ameaçando sem rebuço com a intervenção militar — de que o Brasil de Bolsonaro é um dos instrumentos.

União Europeia na segunda linha

Actor secundário deste jogo, a UE tem contudo sido um activo parceiro dos EUA no ataque ao regime criado por Hugo Chávez e na degradação das condições de vida dos venezuelanos — nomeadamente com as sanções económicas que privam o país de bens essenciais.
Agora, diante da ofensiva extremada de Trump, limita-se a dizer banalidades sem qualquer efeito político prático que não seja ir na cola dos EUA. Começou por inventar a “via alternativa” de eleições “livres e justas”, sem ainda reconhecer Guaidó como presidente interino, e pretendeu com isso definir uma “posição comum” europeia. Mas, logo de seguida, a declaração unilateral de alguns países (Alemanha, França, Reino Unido, Espanha, a que se colou Portugal) de apoio a Guaidó destroçou a “posição comum” antes mesmo de ela existir.

A UE quer lavar as mãos do golpe militar interno ou da intervenção militar externa promovidos pelos EUA — mas quer, ao mesmo tempo, colher os frutos que advenham do eventual derrube de Maduro.

Ora, é fácil de ver que quando está em marcha um golpe, a única declaração eficaz contra isso será condená-lo, opôr-se-lhe e denunciá-lo. Sobre isso a UE não emitiu uma só palavra. Não são as eleições “livres e justas” que a UE arvora — para fingir que se distancia de Trump — que farão frente ao golpe ou poderão moderar a agressividade terrorista dos EUA. A postura de polícia bom que a UE encena não convence ninguém.

Falsos pruridos democráticos

Já que os dirigentes europeus invocam pruridos democráticos, seria bom lembra-lhes alguns factos. Por exemplo, contra a posição tomada pela UE, a ONU reconheceu a validade e a legitimidade das eleições presidenciais que Maduro venceu em Maio passado. Por exemplo, contra o argumento de que a oposição venezuelana está amordaçada, a Assembleia Nacional (de que os EUA e a UE agora se servem) é maioritariamente formada por oposicionistas. Por exemplo, contra a afirmação de que a Assembleia Constitucional é ilegal, há o facto de ela ter sido uma das reclamações da oposição, que pretendia com isso mudar a Constituição bolivariana, e perdeu a aposta.

Também as acusações de “incompetência” do regime em matéria económica são de um cinismo revoltante. Tanto os EUA como a UE sabem bem como a Venezuela depende crucialmente do petróleo e como sempre fizeram tudo para que o país se mantivesse exactamente assim, na condição de simples fornecedor de matéria prima. A distorção na economia nacional que isto representa não foi criada pelo chavismo. A Venezuela, sofrendo fortes quebras das vendas de petróleo, é pois, primeiro que tudo, uma vítima entre muitas outras da quebra da actividade económica do capitalismo a nível global.

O cinismo chega ao cúmulo quando, apontando a crise de abastecimento de bens de consumo, se esconde o facto de os EUA e a UE levarem a cabo, desde há anos, um embargo de bens essenciais, desde alimentação a medicamentos. Para se avaliar o calibre da manobra, Guaidó prometeu 20 milhões de dólares vindos dos EUA para “ajuda” aos “mais necessitados”, isto depois de a oposição venezuelana ter sido uma peça activa na sabotagem económica e no açambarcamento de bens.

Mas é claro que não são questões de liberdades democráticas e de boa gestão económica que estão em causa quando se monta uma conspiração para derrubar um regime político que não convém. A mudança de rumo político que toda esta maquinação pretende não tem segredos: resume-se a fazer a Venezuela regressar à órbita do imperialismo ianque, que quer recuperar a sua condição de senhor incontestado da América Latina. O chavismo retirou a Venezuela do círculo de países dependentes do imperialismo. E é isso que os EUA — com a UE a não querer ficar de fora — procuram reverter.

Nós por cá, todos bem

O lado nacional português de toda a questão é, não só revoltante, como repugnante.
Governo, presidente da República e todas as forças partidárias — com excepção do PCP, que denunciou o golpe — limitam-se ao papel de corifeus das maiores potências da UE, antes mesmo de esta ter tomado posição. Alinham no ultimato a Maduro para convocar eleições como mero passo intermédio para apoiar Guaidó, dando respaldo em termos práticos à conspiração dos EUA.

O jesuítico ministro dos Negócios Estrangeiros limitou-se a perceber a direcção do vento que soprava da Europa central e começou por prometer seguir a “posição conjunta” que estaria a ser decidida. Mas como a UE, já se viu, não definiu nenhuma posição conjunta, logo Santos Silva (falando pelo Governo e por Marcelo) se colou à posição do momento, a da Alemanha e quejandos, garantindo apoio a Guaidó a curto prazo.

O PSD e o CDS, como seria de esperar (mas é sempre bom registar), farejaram que a coisa não se ficaria pelas meias tintas e apostaram logo na posição norte-americana — todo o apoio a Guaidó, já —, “exigindo”, em bicos de pés, que o Governo fizesse pressão sobre a UE nesse sentido, como de facto fez.

O BE, titubeando, sem coragem nem vontade de afirmar uma posição política independente, omitindo-se sobre a questão fulcral — o golpe imperialista em marcha, que o seu líder parlamentar reduziu à expressão “pressão de fora” — seguiu, um passo atrás, a via da UE, do PS e dos partidos da direita.

Mais declaração, menos declaração, para esta cordial entente, a ideia prática é a mesma: siga o golpe de Estado.


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