França: a luta de classes sai à rua

Manuel Raposo — 12 Dezembro 2018

O recuo do presidente Macron, depois de quatro semanas de clima insurreccional em toda a França, pode amortecer, ou mesmo esvaziar, o movimento de protesto dos Coletes Amarelos. O acolhimento dado pelo poder aos sindicatos para efeito de “negociações” — a fim de ter “interlocutores” — pode significar que os protestos acabem numas quantas concessões quanto a salários e impostos. Mas resta sempre a lição acerca daquilo que está na origem do protesto, de como ele conquistou tanto apoio popular, de como se espalhou por todo o país (e se ramificou episodicamente à Bélgica e à Holanda) e de como atingiu o grau de violência que se viu sem perder apoios.

A questão de base, claramente evidenciada pelos manifestantes, é a quebra do nível de vida das classes trabalhadoras. O predomínio de mulheres no início dos protestos foi sublinhado como a prova de que a condição económica dos trabalhadores está no limite. O salário não chega ao fim do mês, dizem todos. Esta quebra não é de agora, acumula-se desde há anos e não pode, pois, ser atribuída a este ou àquele programa político. É o resultado, acima de tudo, da profunda crise económica do capitalismo que empurra para a miséria quem vive de um salário.

O facto de esta crise e estes protestos se verificarem, uma vez mais, num país capitalista desenvolvido, mostra que não se trata de uma questão de “subdesenvolvimento”, ou de “escassez de produção”. Trata-se sim da incapacidade de um sistema capitalista hiper-desenvolvido, como é o francês, subsistir sem provocar crescentes desigualdades. A “deficiente distribuição” da riqueza de que se fala não é causa, mas efeito, desse processo gerador de desigualdades — e é um sinal da senilidade, do bloqueio, do próprio sistema de produção de lucro. É isso que está subjacente aos protestos, que rejeitaram claramente a degradação do modo de vida a que os trabalhadores franceses são forçados de ano para ano e de geração para geração.

Não admira, portanto, que a falta de saída, quanto às questões de fundo, seja a marca das propostas apaziguadoras de Macron. Ele promete subir o salário mínimo e cortar alguns impostos sobre o trabalho, mas tenciona pagar esse aumento de despesa e a quebra de receitas do fisco com cortes noutras despesas do Estado, que afectarão inevitavelmente a generalidade da população. Uma coisa não faz Macron: repor o imposto sobre os altos rendimentos capitalistas, que ele eliminou no primeiro ano do mandato, e que, de uma assentada, cortou 4 mil milhões de euros de receita do Estado. Sinal evidente da política de classe que o seu governo leva a cabo. Tudo como dantes, portanto, quanto ao essencial.

Os protestos têm sido uma demonstração viva de luta de classes, participada por trabalhadores, pensionistas, classes médias baixas. Os alvos foram bem identificados de forma espontânea: os ricos, o Estado que os serve, a governação, as medidas fiscais que penalizam quem trabalha e isentam quem explora o trabalho. Neste sentido, o movimento atinge não só as forças políticas do poder, mas também a extrema-direita fascista que pugna por uma ilusória “união nacional” que salvaria a França. Esta “união nacional” tem justamente por objectivo mascarar a luta de classes e iludir com isso a raiz da crise — que não está nas personagens que ocupam o poder mas no próprio capitalismo, que os demagogos fascistas prometem “disciplinar” e “nacionalizar”.

Por ter a natureza de uma luta de classe, o movimento não foi marcado nem pelo nacionalismo, nem pela aversão aos imigrantes, como gostaria certamente a extrema-direita. Isto prova que uma movimentação de massas de base popular constitui uma real via alternativa ao aparente dilema (que afinal colocou Macron na presidência) que é este: ter de aceitar a direita para não ter de apanhar com a extrema-direita. Esta falsa escolha, que paralisa a iniciativa política da massa trabalhadora, foi rompida pela acção de rua — própria, independente, sem punhos de renda.

Uma sondagem do Instituto Francês de Opinião Pública, feita após três semanas de luta (5-6 Dezembro), dava um quadro elucidativo da proximidade da população (designada como participação ou apoio) com o movimento. Entre os operários: 86%; empregados (não operários): 76%; desempregados: 78%; trabalhadores independentes: 73%; reformados: 57%; profissões intermédias: 70%; quadros e profissões intelectuais superiores: 54%. No mesmo inquérito, entre os apoiantes activos (“Sim, eu sou um Colete Amarelo”) destacam-se igualmente os operários com 31%.

Os moralistas quiseram, como sempre, distinguir entre os bons manifestantes — que levantam de modo “razoável” as suas exigências — e os maus manifestantes — que recorrem à violência e à destruição. Mas a verdade é que, se não fosse esta violência, o protesto não sairia dos rodapés dos noticiários. Foi precisamente porque saiu dos carris, porque transgrediu a norma do protesto pacífico, e se tornou verdadeiramente democrático, que ele feriu o poder e fez sair a França do marasmo. Mais: foi isso que mobilizou mais gente para o protesto, por essa gente ver que não se tratava de mais um protesto sem efeitos práticos. Os cerca de 80% de apoio ao movimento entre a população francesa, mesmo quando ele já tinha mostrado a sua radicalidade nas ruas, prova isso mesmo. Esse apoio não se referia apenas à justeza das reivindicações levantadas, mas também à eficácia com que o movimento, com a sua intransigência e a sua persistência, as soube trazer para o primeiro plano da opinião pública — francesa e internacional.

Como alguém fez notar, a violência de que se devia falar não é a dos manifestantes: é a do governo Macron que, com um decreto, poupou aos ricos 4 mil milhões e tratou depois de cobrar isso, e mais ainda, aos trabalhadores e aos pobres com impostos e mais impostos. A verdadeira França insubmissa é a que veio para a rua, cortando a direito entre direita e extrema-direita. E deixando a esquerda “razoável” de queixos caídos.


Comentários dos leitores

aov 13/12/2018, 16:19

Este movimento dos "coletes amarelos" designadamente em França revela que os partidos do sistema (esquerda/direita) estão ultrapassados e não conseguem mobilizar a população.A população sente que está a ser roubada pelos partidos do governo, então qualquer ponta de cigarro pode incendiar todo um país e até derrubar governos e faze-los ceder como fez Macron nalgumas medidas que queria implementar. Também em Portugal está em marcha um protesto (21 Dezembro) semelhante ao francês. Pode ser organizado ou apoiado pela extrema-direita e por sectores direita, mas os trabalhadores explorados não podem virar a cara a este protesto e criar um protesto alternativo com justas reivindicações operárias. Se nada for organizado a extrema-direita é que ira cobrar os dividendos.

leonel clérigo 17/12/2018, 16:56

PARIS JÁ ESTÁ A ARDER?…
Desde a grande Revolução Burguesa de 1789, que as classes trabalhadoras de França vêm, periodicamente, levantando nas ruas de Paris - e nas maiores cidades de França - o “cartão vermelho” aos efeitos que a marcha turbulenta do Capital vem impondo às suas vidas.
Após as “esperanças perdidas” de 1789, seguiu-se 1848 e 1871. Três Revoluções de “peso” em menos de um século, é obra!
E a coisa não se ficou por aí: seguiram-se duas guerras imperialistas - 14/18 e 39/45 - e, muitos de nós, ainda se recordam do Maio de 68 e, agora, apreciam ao vivo os “coletes amarelos”. Talvez por tudo isto, há quem diga de França que ela ganhou o “estatuto” de “consciência social” dos povos da Europa.
1 - Parece evidente à observação, que toda esta “marcha revolucionária” não teve uma “unidade de propósitos”: até 1871 foi “uma coisa” - Marx e Engels fazem, nas suas análises históricas, a radiografia disso - e depois “foi outra”, que tem a ver com a chegada dos monopólios e sua “mão de ferro” sobre o resto do mundo colonizado. Penso que esta “fractura” é possível ser comprovada apreciando os “propósitos” dos diferentes “estádios” deste ciclo revolucionário francês. Em minha modesta opinião, um “significativo” ponto de inflexão vai-se dar no final da guerra de 39/45 com a “dissolução” da “Frente Popular” e a chegada dos “dólares” americanos: é o “Estado do Bem-Estar” do Plano Marshall que acabou por “apaziguar” toda a classe trabalhadora europeia “ocidental”.
Mas quando - nos fins de 60 - a reconstrução dos “desastres de guerra” se esgota trazendo a “crise” à produção, a juventude francesa - que “cheirou” cedo a “desgraça” - lança na rua o “Maio de 68” pondo a nu a agonia do “Bem-estar” keynesiano. “Meu dito meu feito”: no início de 70, chegou a “Austeridade” e a “Precariedade” trazidas pelo Neoliberalismo e cujo propósito primeiro era suster a “queda das taxas de lucro” e prosseguir em paz a “acumulação capitalista”. O resultado já o “conhecemos de ginjeira”: apertar o cinto a quem vive do salário. Como é sabido, “não se fazem omeletes sem ovos”.
2 - A França, é hoje um dos “elos fracos” da aristocrática “cadeia imperialista”. E se voltarmos a abrir o “Relatório sobre a situação internacional” de Jdanov (1947) - entre nós editado em 1975 pela “Edições Maria da Fonte” - e a “apreciação” que faz do “estado em que ficou o mundo” no final do conflito, podemos apreciar a “situação da França” e até de toda a Europa:
“Das seis potências chamadas ‘grandes’ (a Alemanha, o Japão, a Inglaterra, os Estados Unidos da América, a França e a Itália) (1) três foram eliminadas a seguir à derrota militar: a Alemanha a Itália e o Japão. A França também ficou enfraquecida e perdeu o seu antigo nome de grande potência (sublinhado meu). Assim, já não restam senão duas grandes potências imperialistas mundiais: os Estados Unidos e a Inglaterra. Mas as posições de um destes países, a Inglaterra, encontram-se abaladas (…) Desde o fim da guerra a dependência financeira e económica da Inglaterra em relação aos Estados Unidos da América não parou de aumentar”.
3 - Este “enfraquecimento” da Nação francesa no conjunto imperialista, não vai sofrer alterações significativas no tempo. Pelo contrário: a chegada da crescente “luta de classes” revolucionária trazida pelo chamado “3º Mundo” colonial - cujos marcos maiores foram a derrota militar dos USA no Vietname e Cuba assim como a ascensão ao mercado mundial do “gigante” Chinês como grande potência produtiva - abala o imperialismo e acaba metendo “a grande solução” dos “tecnocratas de Chicago” em apuros, empurrando o Neoliberalismo para os “cuidados intensivos” onde já hoje se encontra “ligado à máquina”. Resultado: a "crise" engordou.
4 - A curiosa situação da França que, de país “vencedor” é agora “dependente” de um “vencido” - a Alemanha (2) -, vai dar muito que falar. E a “aristocrática” Inglaterra, achando essa sorte indigna, quer já “pôr-se ao fresco” mesmo a troco da “dependência” quase colonial da sua “antiga colónia”. Isto ajuda a revelar como são “insondáveis” os caminhos do mal-chamado “Populismo”.
A França, sofre hoje de inúmeras mazelas graves que afectam o seu “sistema produtivo” e leva o já frágil estatuto imperialista da sua “grande burguesia” a escorregar para o fundo da tabela. A crise económico-social aprofunda-se, começando na “indústria” e terminando na “crise dos campos”, um dos "velhos" sustentáculos da França burguesa saída de 1789 e que Napoleão Bonaparte utilizou nos seus exércitos para “acelerar” a formação duma Europa burguesa. Dizia uma “colete amarelo”: “…é a França do campo pobre que está aqui” em Paris. Será verdade?…Quem souber que diga pois tem aí a "chave" do conflito "amarelo".
5 - Mas seja como for, parece-me - oxalá me engane…- que os “coletes” andam ainda arredados da “imaginação ao poder!” O que pedem, parece ter a ver com a “quebra do nível de vida” - nas suas diferentes “formas” e que vão do “preço dos combustíveis”, à “sobra de dias no fim do ordenado” e à “precariedade no trabalho” - ou seja: a rejeição da “Austeridade” trazidas pela hegemonia do Capital Financeiro Neoliberal. Em suma: pedem, para já, o funeral do Neoliberalismo, o que não é pouco.
A ser assim, surge a questão: que tem na “manga” o enfraquecido capital imperialista francês para oferecer de seguida? Um saco de nada, para além duns “cobres” mensais “tapa-buracos”?…
Macron - que tal como o “nosso” ilustre Passos Coelho teve o desplante de aldrabar o povo português com promessas falsas - pensou que os franceses também eram “trouxas”. Agora, foi forçado a sacar da manga um “truque” Keynesiano: enfiar dinheiro nos bolsos da “populaça”, a ver se a cala. Será que este expediente vai resultar? Como se diz na nossa “grande Indústria” do Futebol que nos vai levar à “glória do desenvolvimento”: “Prognósticos, só no fim do jogo…” Como sempre, é a RUA a grande mãe de todas as incógnitas.
Se juntarmos o Canadá a este “conjunto” do capitalismo imperialista, temos o famoso “ramalhete” do G7.
Desde tempos “imemoriais”, era costume os “Guerreiros” vencedores destruírem os vencidos ou os venderem como escravos: da velha Cartago, nem ficou “pedra sobre pedra”. Mas da Guerra imperialista de 39/45, quer a Alemanha quer o Japão, voltaram a ficar “sãs que nem pêros”. Tudo graças à política da “Sandwich McDonald’s” da guerra-fria aos comunistas.


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