Caso de polícia convertido em caso político

Pedro Goulart — 30 Outubro 2018

Em Junho de 2017 é surripiado, sem oposição, abundante material de guerra dos Paióis de Tancos. Os militares portugueses, “heróis” em missões internacionais, parecem revelar-se negligentes cá dentro. Isto acontece, apesar dos gastos crescentes com as Forças Armadas: entre 2017 e 2018 os gastos aumentaram 330 milhões de euros e, para 2024, estão previstos gastos anuais de 4 mil milhões.

Eis um elucidativo filme dos principais acontecimentos divulgados.

Em Julho, um jornal espanhol revela todo o material de guerra subtraído em Tancos, o que é confirmado pelo general Rovisco Duarte, Chefe do Estado Maior do Exército, que afirma, na altura, que o “roubo” só poderia ter acontecido com a colaboração de alguém que conhecesse os paióis.

Ainda em Julho, Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República, e Azeredo Lopes, então ministro da Defesa, deslocam-se a Tancos, para se inteirarem da situação. Também, na altura, a PGR confirma uma investigação ao caso.

Em Setembro, com um distanciamento de analista, dissertando sobre o caso, Azeredo Lopes afirma em entrevista que em Tancos “No limite, pode não ter havido furto nenhum”. Estará o ministro da Defesa a abrir caminho ao branqueamento das responsabilidades militares e/ou civis?

Em Outubro, o Chefe do Estado Maior do Exército revela que o equipamento militar “roubado” em Tancos tinha aparecido na Chamusca, sendo a descoberta feita pela PJM, em colaboração com a GNR de Loulé. E, apesar da gravidade do caso e das discrepâncias existentes entre o material furtado e o material recuperado, Rovisco Duarte ainda pretende fazer humor com uma caixa que teria vindo a mais na devolução.

Feita a “descoberta”, e não obstante a PJ ter sido nomeada pelo Ministério Público como o órgão de polícia criminal do inquérito-crime ao assalto, os investigadores desta polícia são barrados à porta de Santa Margarida (para onde seguira o material bélico recuperado) durante mais de cinco horas. E parece terem sido barrados por ordem do próprio general Rovisco Duarte.

Em Setembro de 2018, o coronel Luis Vieira, director da PJM, é detido pela PJ, juntamente com mais sete pessoas da PJM, da GNR e um civil. Este último, alegadamente um dos implicados directos no furto de Tancos. As detenções então verificadas têm a ver sobretudo com a encenação montada em relação ao “achamento”das armas que haviam sido furtadas e com o encobrimento dos autores do furto. Segundo a PGR, estão em causa “factos susceptíveis de integrarem crimes de associação criminosa, denegação de justiça, prevaricação, falsificação de documentos, tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, abuso de poder, receptação, detenção de arma proibida e tráfico de armas”.

Em Outubro, regressado de uma missão na República Centro-Africana, é detido e interrogado no Tribunal de Instrução Criminal o major Vasco Brazão, anterior porta-voz da PJM. O major, que é referido como tendo desempenhado papel de relevo na encenação e encobrimento da recuperação do material de guerra, afirma-se então, estranhamente, “arrependido, mas de consciência tranquila”. Ele fala para a comunicação social e é loquaz nos interrogatórios, mas parece haver alguma discrepância entre a sua “verdade”, a do ex-director da PJM e a do general Martins Pereira, ex-chefe de gabinete do ministro da Defesa. É o nono arguido deste processo.

Ainda em Outubro, o mesmo general Martins Pereira entrega no DCIAP a documentação sobre a operação clandestina da Polícia Judiciária Militar que afirma ter recebido da mão de dois responsáveis daquela polícia (coronel Luís Vieira e major Vasco Brazão) no Ministério da Defesa. Parece, porém, que o memorando que lhe terá sido entregue não é coincidente com aquele que Vasco Brazão fez chegar aos DCIAP.

Também em Outubro, demite-se Azeredo Lopes e, em seguida, é a vez de Rovisco Duarte fazer o mesmo. As demissões de ambos só acontecem um ano e meio após o furto de Tancos!

Azeredo Lopes justifica a sua saída para evitar que as Forças Armadas continuem a ser “desgastadas pelo ataque político” e pelas “acusações” de que disse estar a ser alvo em relação ao caso de Tancos. Segundo alguns militares e analistas, e tema muito aproveitado pela tropa e pela direita, Azeredo Lopes revelava-se bastante “inábil” para o cargo. Além disso, surgia nalguns meios como suspeito de ter tido conhecimento posterior (e não o denunciar) da operação de encobrimento do furto pela PJM.

A demissão de Rovisco Duarte, Chefe do Estado Maior do Exército, ocorre cinco dias depois da demissão de Azeredo Lopes e dois dias após a tomada de posse do novo ministro da Defesa, João Gomes Cravinho. E surge, no fundo, por razões aparentemente análogas às de Azeredo Lopes. De salientar, contudo, que Rovisco Duarte revela aqui uma grande duplicidade, ao apresentar ao PR “razões pessoais” e aos militares “razões políticas” como justificação para o seu pedido de demissão!

Apesar da névoa que ainda envolve muitos dos factos respeitantes a este caso e de alguns, militares e analistas, nos pretenderem fazer crer que a encenação do “achamento” do material furtado resulta essencialmente duma competição e de divergências entre PJM e PJ, assim como aí pretenderem centrar o essencial do problema, relegando o furto e os seus objectivos para segundo plano, a verdade é que o mais provável é tratar-se de um sério problema de corrupção, envolvendo tráfico de armas e implicando mesmo altas patentes militares.

Isso permite compreender a encenação sobre a recuperação das armas: uma manobra para salvar a face, não só da “instituição militar”, mas sobretudo dos implicados no roubo e na rede de conivência que ele forçosamente pressupõe. A corrupção é parte inseparável, significativa e diária do sistema capitalista em que vivemos e a tropa, como numerosos processos o demonstram, não escapa a esta regra geral.

Também não pode deixar de se admitir a possibilidade de se estar perante uma tentativa, por parte dos meios militares implicados no roubo, ou por ele salpicados e postos em causa, de fazerem causa comum — em bom espírito castrense — para apagarem o rasto do roubo e, simultaneamente, implicarem o ministro e o governo, entalando-os através de “informações” dadas entre-dentes.

Seja como for, o rumo que os acontecimentos tomaram — inclusive com a entrega de um memorando no Ministério da Defesa, solicitando louvores para alguns dos implicados na tramóia, etc. — transforma um caso de polícia num caso político, ganhando o ar de uma provocação que atinge todo o governo.”


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