Um circo montado em volta de McCain

Urbano de Campos — 4 Setembro 2018

Os elogios rasgados ao senador norte-americano John McCain, falecido há dias, que se fizeram ouvir nos EUA como na Europa, e mesmo por cá, têm tanto de ridículo e de vazio como têm de revelador. O piloto de caça, o criminoso de guerra, o reaccionário foi silenciado para que melhor emergisse, neste momento útil, o adversário de Donald Trump.

O homem foi incensado como um patriota, um amigo, um defensor das liberdades, imagine-se!, não apenas pelos ex-presidentes norte-americanos mas também pelos dirigentes europeus, por responsáveis presentes e passados da Nato, pois claro.

Esta unanimidade teria apenas ar de circo se não fosse o que de grave se joga na cena internacional. De facto, a burguesia mundial (pode-se generalizar assim), que se debate com um problema chamado Donald Trump, não encontra melhor alternativa a um fascista do que um criminoso de guerra promovido a herói do “mundo livre”.

McCain ganhou fama e um lugar ao sol nos meios da direita norte-americana por ter sido durante cinco anos prisioneiro de guerra no Vietname. Piloto de caça de missões especiais da marinha, foi abatido em 1967, no auge da guerra do Vietname, quando participava em bombardeamentos sobre a capital, Hanói. Foi libertado em 1973, não sem antes ter reconhecido perante os vietnamitas que as suas acções constituíam crimes de guerra e pirataria aérea.

Regressado, fez-se político, exibindo as cicatrizes, as medalhas e a fama de herói. Como congressista e como senador, sempre alinhou na ala direita do Partido Republicano. Quando se candidatou à presidência, em 2008, concorrendo contra Obama, escolheu para vice-presidente a fascista Sarah Palin — um sinal do pendor que se desenhava no Partido. Até que Donald Trump o suplantou, aproveitando o caminho aberto por ele e por outros como ele — coisa que nenhum dos corifeus agora quer reconhecer.

Durante a administração Obama opôs-se ao acordo com o Irão (que Trump acabou por rasgar). Foi um adepto incondicional dos ataques militares ao Iraque, à Líbia e à Síria. Um dos feitos de McCain na “oposição” que movia a Trump foi, por exemplo, o papel que teve na aprovação de mais sanções contra a Rússia. O mesmo na batalha que travou pelo reforço da Nato.

Graças à sua acção no Comité das Forças Armadas do Senado, conseguiu a proeza de fazer aprovar a lei de Defesa com o orçamento mais alto de sempre, argumentando que a defesa dos EUA (que só à sua conta gastam perto de 40% de toda a despesa militar do planeta) estava a ser desprezada — indo além das ambições do próprio Trump.

É este personagem que Macron (“verdadeiro herói americano”), Merkel (“servidor da liberdade”), Teresa May (“grande estadista”) ou Obama (“todos lhe estamos em dívida”) não tiveram pudor de glorificar.

Nesta onda de arrebatamento, e de indirectas contra Trump, três ex-secretários-gerais da Nato (o dinamarquês Rasmussen, o britânico Robertson e o espanhol Solana) conseguiram ir mais longe. Saíram a terreiro para destacar o papel da Nato, a que chamam “pedra basilar de um mundo estável, livre e pacífico”, enaltecer os “benefícios da liderança mundial norte-americana” e sublinhar que a “unidade transatlântica” é o “único meio para assegurar a paz”. Como se viu na Jugoslávia ou na Líbia, e como se vê no Afeganistão ou no Iraque.
Numa clara alfinetada a Trump, o trio de ex propõe que a nova sede da Aliança Atlântica em Bruxelas seja baptizada com o nome de McCain. Façam-no. É o modo de ficar escrito na parede o que são os EUA e a Nato e por quem alinham os seus lacaios.


Comentários dos leitores

afonsomanuelgonçalves 6/9/2018, 11:38

Este surpreendente texto é uma espécie de pérola que se acha num deserto, isto porque ao ouvirmos tantos encómios absurdos e repugnantes nos diversos canais televisivos não se ouviu uma voz na esquerda portuguesa levantar-se contra este descaramento inacreditável de propaganda completamente afastada da verdade no que diz respeito à biografia do sr. Cain. Isto porque temeram que ficassem colados às posições de Trump. Inadmissível e cobarde não se esclareceu a opinião pública desta deturpação grosseira da verdade.


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