Especular é preciso, fazer justiça não é preciso
Manuel Raposo — 7 Agosto 2018
Há muitos anos que a direita não tinha uma oportunidade para amesquinhar a esquerda como com o caso do vereador do Bloco de Esquerda na Câmara Municipal de Lisboa. Não houve um só exemplar do bando dos comentadores encartados que não aproveitasse para calcar aos pés, não só Ricardo Robles e o BE, mas através deles toda a esquerda. O BE deu o flanco, claro. Mas, vista de perto, a argumentação da direita é uma pedra que lhe cai nos pés.
Começando pela superfície, o BE cometeu dois erros: a coisa em si, e a tentativa de a desculpar. Mas porquê tanta aparente ingenuidade?
O BE pensou, certamente, que o seu combate “democrático” não seria alvo de golpes baixos. Confrontado com a denúncia, ainda pensou, provavelmente, que, se especular com o imobiliário é um negócio legal, e se combater a especulação é também uma actividade legítima e democrática — então porquê anular uma coisa com a outra? Esqueceu-se que há uma realidade chamada interesses de classe e luta de classes — e que a direita não permite que uma Olívia-Patroa/Olívia-Costureira detenha poder político.
O BE também parece não ter tirado lições do caso José Fernandes, eleito pelo BE que virou PS, pensando talvez que qualquer filho-família pode defender os interesses (democráticos) “do povo”. Num caso viu o seu vereador mudar de campo, no outro viu-o ser dado como um indivíduo de duas caras.
Parece também que o BE não viu que é muito alto o preço a pagar por tocar nos interesses instalados (das tais classes), mesmo na escala moderada em que o BE o faz. E parece não ter percebido que a burguesia, por muito democrática, não perdoa.
Todos estes “lapsos” levam a crer que o BE também não atenta no seguinte. À medida que a sua linha política se configura cada vez mais como uma social-democracia “de esquerda” (via para abordar o governo, como ninguém no BE esconde), mais estes casos tenderão a dar-se. Facto que colocará o BE perante a necessidade de limar as arestas que ainda restam das suas veleidades “populares”. É o preço a pagar para “alargar” o campo de recrutamento e ser aceite pela burguesia como força confiável.
Em toda a polémica, o foco inconfessado da direita foi, afinal, a defesa da especulação. Que importam milhares de famílias em casas miseráveis ou sem elas? Isso para a burguesia é “outro problema” — objecto da caridade ou de “programas” de “reforma” que se eternizam no tempo e não resolvem nada.
Os seus argumentos no caso RR resumem-se a isto: especular é legítimo, porque a lei que protege a propriedade privada assim o estabelece; o que não é legítimo é condenar e tentar travar a especulação e, sobretudo, tentar mudar a lei que a protege.
Um dos verdugos de RR disse-o bem claro. O problema não está em “defender uma coisa e fazer o seu contrário” porque “aí haveria apenas um problema moral” (igual ao de um sem número de burgueses, subentende-se). “O problema é RR fazer uma coisa [especular] e tentar impor aos portugueses [uma dada classe de portugueses, convenhamos], através da lei, o seu contrário — e aí reside um problema político”. Nada mais exacto: o crime, político e não moral, é tentar mudar a lei que protege a especulação! Aí está, bem clara, a luta de classes, que não se sujeita a regras democráticas, e que o BE menosprezou.
Tudo o mais que a direita disse só revela a sua baixeza de argumentos e a baixeza da sua condição. Regozija-se por considerar que o BE passou a ser um “partido banal”, “como os outros”, “sem ascendente moral”. Mas isso é um atestado de indigência que a direita passa a si mesma, o reconhecimento de que a normalidade é o pântano da corrupção e da falta de moral. Nenhum assomo de dignidade, de elevação ou de princípios! Apenas a rasteira defesa da especulação como um dos fundamentos da ordem.
A direita julga que atingiu “a esquerda”, toda a esquerda. Ilude-se. Atingiu parte da esquerda parlamentar. Para além de não ter atingido o PCP (desejosa disso anda ela), há uma outra esquerda que não é atingida.
Essa esquerda não tem hoje expressão política, é certo, mas existe como ideia. É a esquerda que (para nos ficarmos pelo caso concreto) não critica a especulação imobiliária pelos seus “excessos”, mas pela sua raiz. Que propõe o fim da propriedade privada — a expropriação dos senhorios-rentistas — pela razão simples de a habitação ser um bem de utilidade social. Este discurso, que hoje soa a miragem, é no entanto o único que responde a uma realidade trágica: a que, em nome dos direitos de propriedade, obriga milhões de portugueses a viver em condições infra-humanas.