O futebol do mundo e o futebol de Alcochete
António Louçã — 2 Julho 2018
O desporto-rei ganhou ao longo do último século uma popularidade sem paralelo entre todas as modalidades. Hoje, está a um passo de ser vítima do seu próprio sucesso. A irrupção de uma milícia embuçada, para agredir jogadores no centro de treinos de Alcochete, ocasionou um debate público com várias análises acertadas sobre a involução que tem sofrido o futebol.
A transformação de clubes desportivos em Sociedades Anónimas Desportivas borrou muitas das fronteiras entre um jogo importante e uma frenética sessão bolsista, com corretores e especuladores a esgadanharem-se pelas suas cotações e apostas, e agora com tropas de choque a tentarem garantir as suas margens de lucro.
Uma das vítimas desta involução tem sido o jornalismo desportivo, que foi em tempos alfobre dos melhores profissionais da informação. Nomes como o de Rui Tovar ainda hoje têm nessa área dignos e ilustres continuadores. Mas, tal como o futebol, o futuro do jornalismo desportivo está hoje seriamente ameaçado.
O jornalismo desportivo e a própria informação generalista são invadidos pelo futebol e, principalmente, pelas adjacências do futebol. Multiplicam-se nos noticiários as antevisões de jogos, os directos à volta de estádios e à porta de hotéis, bem como a histeria de paparazzi emboscados em estradas e aeroportos.
Pior: o jornalismo futebolizado degenera em jornalismo de tricas e rivalidades interclubistas, de “conferências de imprensa” sem perguntas, de intrigas de balneário, de violências de claques etilizadas, de baboseiras debitadas por treinadores, jogadores ou dirigentes desportivos com a pesporrência de oráculos intelectuais, diante de plateias imbecilizadas e ávidas de ouvir essas baboseiras.
Os melhores jornalistas desportivos vêem-se vilipendiados por quererem focar-se nos jogos e nas jogadas, ou por quererem rechear as suas peças com riqueza informativa e análises equilibradas que ferem sempre o espírito de alguma claque e, geralmente, de todas as claques.
Portugal é dos países mais contaminados por esta futebolite aguda e crónica, que medra como erva daninha em qualquer país capitalista e aqui mais do que nos outros. Da santíssima trindade dos tempos do fascismo – os três FFF, Fado, Fátima e Futebol -, o que ganhou maior protagonismo foi o Futebol.
Hoje, qualquer estratégia para combater o capitalismo português e os seus fenómenos mais notórios de apodrecimento, corrupção e negociatas de todo o tipo tem de combater com energia a futebolite.
Que Portugal, um país marginal da União Europeia e um mau aluno repreendido com frequência em Bruxelas, seja ao mesmo tempo uma superpotência futebolística é bem o sintoma indesmentível desde protagonismo do Futebol como folha de parra de todas as negociatas.
Parafraseando uma expressão cara a Passos Coelho, o futebol português tem vivido acima das suas possibilidades. Só quando um pequeno país voltar a ter um pequeno futebol, só então poderemos falar de um capitalismo normalizado, e de um regresso a uma certa normalidade da luta de classes.
Comentários dos leitores
•leonel clérigo 2/7/2018, 15:14
EVOLUÇÕES…
1 - Quando era gaiato, o meu avô levou-me algumas vezes a um terreiro onde, aos domingos e na cidade onde vivíamos, uns quantos “carolas” se juntavam, com frequência, para uma “jogatana” de futebol. Apesar de jogarem sem “equipamento”, sem árbitro e as “balizas” serem limitadas por um pequeno monte de “pedras”, todo o pessoal que assistia - à “borla” - fazia uma pequena multidão que se divertia e delirava com a coisa.
Hoje, o Futebol - como diz António Louça - modificou-se, ganhou estatuto “empresarial” - e até tem CEO “encoberto”… - a tal ponto que podemos referir e com alguma certeza e sem saudosismo, uma “comparação” em relação à “Mitologia Grega”: se o Rei Midas em tudo o que tocava transformava em “ouro”, o Capitalismo em tudo o que toca transforma-o em “merda”.
2 - Numa das suas “conferências”, Bruno de Carvalho pareceu dar a entender que foi o Senhor José Maria Ricciardi quem referiu em primeira mão a questão dos “meninos mimados” que estavam muito “bem pagos” para os resultados que obtinham. Se estou a ver bem a coisa, isto parece indicar que os “mercados” querem começar a “apertar o gasganete” aos jogadores de Futebol.
Efectivamente, a referência ao Sporting como “patrão de jogadores”, parece dar conta de uma nova situação: o “desejo” em transformar a velha imagem do “jogador de futebol” como um “artista” - a existência de dotes pessoais “naturais” pouco comuns - que fazia - e faz... - com que ele beneficie de um “pagamento” fora das “leis” do “mercado”, uma espécie de pagamento ao estilo “água no deserto”. Não temos que nos admirar: é a evolução “dos tempos”. Porque é que o “artista” há-de ter um “estatuto especial” nos tempos do “assalariamento total” e umas “borradas” sobre uma “Tela” valerem milhões ao bolso do “artista”? (Marx refere esta questão no denominado “Capitulo inédito” de “O Capital”). E olhando a coisa à maneira da “teoria da conspiração”, a “claque” não é um bom “instrumento” para isso como parece que se provou em Alcochete? As alterações nas nossas sociedades - onde domina a exploração do trabalho - não exigem “violência”? O “aperto do cinto” do Neoliberalismo chegou-nos com “asas de anjo”?…O PPD que abra o saco...
3 - Ainda em relação às “Claques” e às suas recentes “transformações”, não posso deixar de colocar aqui um ponto que julgo vir a propósito.
Nos tempos do “Fascismo tardio”, recordo-me ter surgido - se a memória não me falha… - uma organização de “jovens do regime” que dava pelo nome de “Jovens de Portugal”. Nas suas “pichagens” de parede, o nome dessa organização - recordo - vinha associada ao “desenho” da “cruz céltica” ou seja, o desenho de uma “cruz sobreposta a um círculo”. Mas porque raio a Juve Leo tomou para si este “emblema”?…E não entendo como alguns “sócios” experientes e democratas dos “lagartos” de Alvalade, nunca se tenham dado ao trabalho de se admirarem com o "transplante" e investigarem da razão disso…
•António Alvão 18/7/2018, 22:08
GOSTAR DE FUTEBOL POUPA MUITO AOS SEUS SIMPATIZANTES A FADIGA DE PENSAR.
"Não há nada mais confortável do que não pensar" - SIMONE WEIL.