“Soldado Milhões” — o filme e a lenda

António Louçã — 21 Abril 2018

O filme de Gonçalo Galvão Teles e Jorge Paixão da Costa que agora estreou será, para o público escassamente informado sobre a Primeira Grande Guerra, uma reconstituição estimulante de ambientes e de personagens. À primeira vista, as entorses ao rigor histórico serão desculpáveis com o formato de “ficção histórica” que é o do filme.

Cabe aqui um alerta prévio contra a indulgência excessiva que se ponha na conta do género ficção histórica. História é uma coisa e ficção é outra: quando se opta por um tema como este que o título sugere – “Soldado Milhões” – não se deve propor ao público, como história, aquilo que é apenas ficção.

A ficção histórica pode ser um género literário ou cinematográfico fecundo se partir do conhecimento da história, detectar as lacunas do conhecimento histórico e propuser o preenchimento dessas lacunas com uma ficção plausível. A liberdade artística, na ficção histórica, não é para os autores se afastarem da realidade dando asas a uma fantasia delirante, e sim para se aproximarem dela, do que pode ter sido, do que tem lógica que fosse – numa palavra, mais uma vez, porque é palavra-chave, do plausível.

Essa regra de ouro foi com frequência deixada de lado no filme de Galvão Teles e Paixão da Costa. A principal lacuna do nosso conhecimento histórico no episódio do “Soldado Milhões” diz respeito aos militares que ele alvejou. Eram alemães disfarçados de portugueses, como ele afirmou? Eram alemães com uniformes semelhantes aos portugueses e que, por esse motivo, ele pensou que fossem uniformes portugueses? Eram portugueses que ele tomou por alemães e abateu com “fogo amigo”?

Sabemos, por vários relatos, que houve “fogo amigo” no 9 de abril. E sabemos pelas confirmações mais diversas e mais cruzadas que não houve alemães disfarçados de portugueses. “Milhões” pode ter matado alemães pensando que eles estavam disfarçados de portugueses, pode ter matado portugueses pensando que eles eram alemães ou pode, na sua memória, ter reconstruído honestamente o episódio, com a teoria do disfarce, para justificar que só numa fase muito avançada da “batalha” abriu fogo contra os inimigos, ou supostos inimigos.

O filme não toca de todo nesta dúvida que é a mais importante sobre o papel de “Milhões” nem intenta preencher a respectiva lacuna com algum relato ficcionado. E só toca muito superficialmente na utilização propagandística que fizeram as autoridades republicanas, sidonistas, fascistas e finalmente democráticas, até ao presidente actual, para fabricarem o mito de “Milhões” e para o colocarem ao serviço das suas respectivas agendas políticas. Tal como não toca nas dificuldades que ele sempre continuou a ter para alimentar a sua família e que o levaram, durante um período dos anos 20, a emigrar para o Brasil, em busca de melhor fortuna.

Tão-pouco se refere em momento algum o mérito maior que teve “Milhões”, segundo o seu próprio relato: na caminhada para a retaguarda, em busca do seu batalhão, ele passou a certa altura por umas ruínas e ouviu um choro de criança. Foi ver e resgatou dessas ruínas uma menina muito pequena, que ainda não andava. Pô-la às costas e prosseguiu a caminhada, com considerável sacrifício, porque já carregava um considerável peso do seu equipamento. O foguetório lançado durante décadas sobre os muitos alemães que terá matado Aníbal Milhais tem a mesma explicação que o silêncio sobre o resgate da criança: na fábrica de heróis para as várias propagandas burguesas do século XX, era mais cotada a eliminação de inimigos do que o salvamento de civis. É pena que o filme dos nossos dois realizadores não tenha questionado esta dualidade e se tenha mesmo mantido como seu refém.

A ficção histórica do filme foi romantizada muito para além do que teria permitido a observância daquele mínimo de rigor que se espera neste contexto. É romantizada, desde logo, a imagem do dia-a-dia das trincheiras. Ele aparece marcado por frequentes combates, por vagas de inimigos lançadas ao assalto das trincheiras portuguesas, alvejados quando praticamente já se lhes vê o branco dos olhos; e por contra-ataques portugueses, lançados sobre a terra de ninguém, chegando ao ponto de combates corpo-a-corpo e, pelo menos num caso, a golpes de baioneta.

A realidade das trincheiras portuguesas era completamente diferente. Os grandes inimigos dos soldados eram a fome, o frio, a chuva, a neve, a lama, os piolhos, as doenças, o tédio, a “melancolia”, como diz Jaime Cortesão. Os cuidados com o inimigo consistiam em algum ocasional bombardeamento de artilharia e em algum ocasional disparo de “sniper”. Até ao 9 de abril de 1918, 99 por cento dos combatentes do CEP nunca terão receado um assalto alemão à sua trincheira e muito menos terão participado em algum duelo de baioneta.

E isto tinha um motivo muito simples: a tropa portuguesa, mal preparada, fora destinada pelo alto comando britânico a guardar um pântano, onde era muito improvável que fosse lançada alguma ofensiva. O filme omite inteiramente a realidade desse “deserto de lama” e é rodado num cenário de azinheiras e sobreiros, de terras áridas e poeirentas, que se parecem muito mais com o Alentejo profundo do que com a Flandres. Produção de baixo orçamento? Talvez, mas sempre seria mais barato encontrar algum lamaçal que emprestasse alguma verosimilhança ao relato, do que pagar um zepelim completamente despropositado.

Algumas das personagens são introduzidas na narrativa de modo um tanto forçado. O caso mais inócuo ainda será o de Jaime Cortesão, apresentado como censor, além de médico. Menos tolerável é o caso do “Malha Vacas”, um amigo e companheiro de Milhais que é sorteado para o fuzilamento do soldado Ferreira de Almeida, apenas para lembrar que o fuzilamento teve lugar. Depois, traumatizado por essa experiência e “melancólico” pelas saudades de casa, o “Malha Vacas” pega na pistola e dá um tiro na cabeça.

A história do “Malha Vacas”, tal como Milhais a recordava em 1967, era diferente: quando o batalhão fugiu para a retaguarda, ele permaneceu com Milhais. Quando ambos decidem fugir também, o “Malha Vacas” é morto por uma granada. No filme, em linha com a romantização forçada do relato, o “Malha Vacas” suicida-se antes do 9 de abril, portanto em tempo útil para deixar Milhais como herói solitário, a cobrir a retirada dos companheiros.

A narrativa sobre as trincheiras é paralela a uma narrativa da vida do herói no pós-guerra, quando se vê forçado a dar caça a um lobo que lhe ataca as ovelhas. A dualidade cronológica, recurso admissível em princípio, não é neste caso inteiramente bem sucedida. Abusa-se dela e torna-se um ping-pong pouco atraente para a apresentação da história. Mas, para além da sua eficácia narrativa, essa dualidade é colocada ao serviço do subtexto realmente perverso que subjaz ao filme, tal como à ideologia chauvinista co-responsável pelos milhões de mortos daquela guerra: o inimigo, sempre desumanizado e sem rosto, apesar da fantasiosa proximidade dos combates, é identificado com o lobo.


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