Uma mão lava a outra

Manuel Raposo — 23 Março 2018

RioCristasDá vontade de rir a súbita preocupação que, nos tempos mais recentes, perpassa nas fileiras do PSD e do CDS a respeito da “matriz ideológica” de cada um deles. No PSD, os apoiantes de Rio reclamam o regresso aos “valores” da “social-democracia”, contra o que terá sido uma “deriva liberal” da época Passos Coelho. No CDS, vincam-se os “princípios” da “democracia cristã”.

Depois de terem andado de braço dado durante quatro anos de Troika sem nada que os distinguisse; depois de terem andado, com toda a direita por esse mundo fora, a bradar que as ideologias tinham acabado; que, diante das necessidades da “economia”, do “mercado” e da “defesa das instituições”, não havia esquerda nem direita, mas simplesmente “políticas” ditadas pelo “realismo” — depois de todo este compadrio e afã pragmatista, eis que parecem regressar às velhas confrontações de ideias.

Regressam mesmo? Nada disso. A ideologia da burguesia, toda ela, resume-se à eficácia no ganho, na manutenção do poder, na perpetuação das condições de exploração — e mede-se pelos lugares rendosos que os seus agentes ocupam. A facção mais à direita desta burguesia, corporizada no PSD e no CDS, está a sofrer as agruras do afastamento do poder. Os seus apaniguados perdem sinecuras e visibilidade pública, e isso dói-lhes. É essa desgraça que os acicata.

A disputa “ideológica” que agora inventam reduz-se à tentativa de encontrar o caminho mais expedito para o regresso ao poleiro. É a demagogia de sempre que agora se quer dar ares de “programa”.
O PSD tem, por razões óbvias, necessidade de se distanciar de Passos Coelho (sem deixar de lhe agradecer o serviço prestado), a fim de dizer aos ingénuos que não é tão direitista e tão inimigo do povo como mostrou ser nos anos da Troika, quando o vento o empurrava pelas costas. O CDS, precisando na mesma de se descolar da aliança Portas-Passos, tem de tentar afirmar-se diferente e distante do PSD, e para isso calha bem o rótulo “democrata-cristão”.

Como é fácil de ver, tudo se fica por um propósito (de resto, bem anunciado): segurar os votos de direita e captar os eleitores das classes médias que em 2015 os abandonaram e se deslocaram em parte para o PS. Neste duplo objectivo há uma espécie de divisão de tarefas entre PSD e CDS, um mais ao centro outro mais à direita.

Tudo vai valer, daqui até às próximas eleições legislativas, para parecer que os quatro anos da Troika não existiram e que os seus agentes portugueses já não contam. Uma mão lava a outra, e ambas lavam a cara.


Comentários dos leitores

leonel clérigo 23/3/2018, 14:43

AS PREOCUPAÇÕES de BELÉM
MR refere acima um aspecto que dá certo “conteúdo” à “balbúrdia" instalada nos designados “partidos de direita” - PPD, CDS e suas “orlas” mais ou menos “duras” - e é uma função dos seus “ajustes” aos “novos tempos”: “…segurar os votos de direita e captar os eleitores das classes médias que em 2015 os abandonaram e se deslocaram em parte para o PS”.
Mas se olharmos as “preocupações” de Belém vemos mais uma coisa a não desprezar: a sua “pressa” em “estabilizar” a “oposição”. E ele lá tem as suas razões.
Efectivamente, parece que no nosso país só existe hoje uma classe social digna de atenção e respeito: a famigerada e decisiva “classe média” que, se procurarmos indagar qual o seu “conteúdo”, deixa qualquer um “engasgado”. É natural: a investigação das classes sociais não é “pera doce” e temos que concordar que não é propriamente uma área “atractiva” e que deixe “à vontade” qualquer intelectual burguês que vai assim ter de se confrontar com a existência de “classes exploradas”. Contudo, “la noblesse oblige…” e a "exploração do trabalho", ainda mais.
Mas, se na “teoria” a coisa “fica preta”, já na “prática política” o “olfato” é mais apurado. E que o diga o nosso “PR”. Na superfície das coisas, a “classe média” não passa de um “guarda chuva” engendrado pelo Capital, um “difuso” e “volúvel” conjunto sem “critério” e “fomentado” para se “opor” às possíveis ofensivas do mundo do trabalho e em nome da famigerada “propriedade privada” - que os comunistas “nacionalizam” até à “escova de dentes” - quando a crise social se tende a agudizar. E se ela - como hoje dizem - se “deslocou” à “esquerda”, função do aperto que a “direita” lhe deu - fomentando o seu “isolamento” - ficou a classe capitalista sem a habitual “alternativa pendular”. É essa a máxima preocupação do nosso PR que não acha isso nada bem. Até porque - face a uma crise aguda que se instale de surpresa - não se vê maneira de se levar facilmente, com um “golpe de força” à Mário Soares, a “classe média” de volta aos tempos da “Alameda” de 75.

afonsomanuelgonçalves 27/3/2018, 10:38

De quando em quando a democracia dos exploradores sofre um revés que a abala e atormenta; é a crise do sistema capitalista que não obedece aos desígnios do próprio capitalismo. Desemprego galopante, sistema financeiro de casino, criação de riqueza paralisada. Perante este quadro as diversas facções dos grupos que vivem à custa das mais valias diversificadas desesperam e rodopiam nas ideologias já de certo modo mortas numa última tentativa para que o convento se salve da implosão. Mao Zedong dizia com a sua ironia habitual que quando a burguesia fica desesperada cospe para o ar e atira tiros para os pés. Infelizmente aqui neste torrão mais ou menos acolhedor eles discutem o sexo dos anjos.


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