Opressão sexista e poder imperial
António Louçã — 19 Janeiro 2018
Já antes a opressão sexista tinha estado no centro de polémicas a propósito de figuras como Bill Clinton ou Dominique Strauss-Kahn. Agora, a denúncia do caso Harvey Weinstein, além de reacender o debate sobre a opressão sexista, traz à luz do dia alguns traços psicológicos da oligarquia que domina o mundo.
Aquando da entrega dos Globos de Ouro, várias actrizes apresentaram-se vestidas de negro e Oprah Winfrey fez um discurso sobre o assédio sexual, baseado em boa parte na sua própria experiência de vida. O discurso de Oprah teve um impacto tal que imediatamente foi visto como pontapé de saída para uma candidatura presidencial em 2020. Já se viu que Hillary Clinton era uma fraca adversária para um falocrata como Donald Trump. Ao ouvir Oprah, dir-se-ia que ela, mulher negra de linguagem franca, directa e popular, tinha a garra para enfrentar um bilionário populista.
A este impacto logo começou a responder uma contraofensiva muito focada no historial de silêncio das actrizes protestatárias, na carreira que fizeram apesar disso — ou por causa disso —, no oportunismo de denunciarem apenas quando se tornou moda. O coro farisaico tratou de desacreditar as actrizes de negro como dondocas de Hollywood sacudidas por uma má consciência tardia.
A isto juntou-se um manifesto publicado em França por várias personalidades, como Catherine Deneuve, com argumentos formalmente certos, contra o fundamentalismo puritano e contra o policiamento de linguagens e comportamentos, mas postos ao serviço de uma discussão errada. Com efeito, as pessoas que subscrevem o manifesto francês falham o alvo.
O questionamento do assédio sexual, tal como surgiu na cerimónia de entrega dos Globos de Ouro, não é um questionamento de flirts nem de piropos inocentes. O que está em causa é a prepotência de uma elite bilionária que compra o que pode e toma pela força o que não pode. Essa oligarquia julga-se no direito de dispor da humanidade – mais frequentemente de mulheres e crianças – como de um harém, sempre em estado de prontidão para deleite de quem pode pagar, ou contratar, ou despedir.
A gravação recente com Yair Netanyahu é reveladora dessa prepotência. O filho do primeiro-ministro israelita discute com um amigo, filho de um bilionário da indústria energética, lembrando-lhe que o político pai tinha facilitado ao empresário pai um contrato faraónico. O lembrete serve como argumento para que o amigo não se faça esquisito na discussão de umas centenas de shekels para pagar a prostitutas. Pelo caminho, o jovem Netanyahu vai dizendo que pode emprestar-lhe a sua namorada para pagar dívidas contraídas no clube de strip.
Não estamos a falar de um adolescente em crise de identidade, mas de um jovem adulto com 26 anos, publicamente associado a seu pai, e com influência decisiva em algumas opções políticas deste: quando Benjamin Netanyahu começara por condenar o sargento Elor Azaria por assassinar um prisioneiro palestiniano ferido e inconsciente, Yair convenceu o pai a virar radicalmente de bordo e a apoiar o assassino. Do mesmo modo, Jared Kushner exerce ocasionalmente alguma influência sobre o sogro, Donald Trump, mas tem procurado fazê-lo com a preocupação de poupar-lhe as figuras mais tristes.
Não deixa de ser significativo que, em caso de dúvida, a radicalização preconizada pelo jovem Netanyahu tenda a prevalecer sobre resquícios de cautela política do pai e a prepotência espontânea de Trump tenda a prevalecer sobre assomos de prudência do genro. E voltamos aqui às pulsões desenfreadas que não são dos seres humanos sexuados, nem dos homens como tais, e sim dos detentores de um poder imperial que se habituaram a estar acima da lei ou da moral civilizada.
A existência de balizas legais ou morais em nada condiciona o comportamento dos pequenos e grandes imperadores nossos contemporâneos, no momento de assediarem, abusarem ou violarem. Condiciona-os apenas no momento de lhes ser lembrado que na era dos iPhones esses vícios privados, ou esses crimes escondidos, facilmente se tornam públicos. E a reacção de todos eles é típica: Trump pagando à prostituta “Stormy Daniels” para se calar sobre os seus encontros de 2006, Netanyahu reclamando uma lei para proibir gravações como a que comprometeu o filhote.
Contra o silenciamento que pretendem os Clintons, os Strauss-Kahns, os Trumps e os Netanyahus desta vida, o protesto nunca vem demasiado cedo e nunca vem demasiado tarde. Não se sabe, nem importa demasiado, se quem protesta agora se calou durante muito ou pouco tempo. Se calou longamente, ainda bem que agora resolveu denunciar os abusos. Se resolveu agora porque há mais gente a fazê-lo, ainda bem que a vaga de fundo lhe deu inspiração.
Cem anos depois das revoluções russas de Fevereiro e Outubro, é bom lembrar aquela chispa que, numa pradaria seca, pode vir em qualquer momento. E o fogo pode até ser ateado por meia dúzia de dondocas que digam “o czar vai nu!”, e depois são seguidas por multidões que já tinham visto essa nudez mas, para se lançarem na refrega, só esperavam que alguém a denunciasse em voz alta.
Comentários dos leitores
•afonsogonçalves 27/1/2018, 15:43
Marx afirmou num dos seus artigos que o casamento tem como complementos o adultério e a prostituição. Ora, não saindo da actividade sexual dos seres humanos, temos que concluír que ela não está separada de todas as outras actividades, até porque é em função de uma sociedade mecanicamente organizada que todas as outras derivam da forma como a sociedade se organiza e se manifesta em todos os outros domínios. Por isso a actividade sexual não pode fugir à regra, e comprometer-se cegamente numa esfera moral desligada de tudo o resto. E é nesta sociedade discriminatória onde a mulher desempenha uma função subalterna que a torna sujeita aos vexames mais funestos e ignóbeis. Sem pôr em causa todo o sistema, retemo-nos na síntese suprema de Marx e verificamos que é necessário ir mais longe.