O sinal dado pelas autárquicas
Manuel Raposo — 16 Novembro 2017
O grande ganhador das autárquicas foi obviamente o PS, tanto face à direita, como face aos seus parceiros de coligação. A vitória sobre a direita não precisa de explicação: a massa popular reconhece a diferença entre ser violentamente espoliada e recuperar, mesmo a conta-gotas, algum do poder de compra e das condições de vida que PSD e CDS arrasaram em quatro anos. Já o ganho do PS sobre a sua esquerda requer mais atenção. Por isto: se se afirma que é a parte esquerda da coligação que força o PS a fazer o que faz, por que razão não é essa esquerda a beneficiar dos votos?
De facto, no panorama político geral do país, de pouco serve (a não ser como incentivo militante) a subida do BE; e de nada serve ao PCP vaticinar que os eleitores vão arrepender-se das 10 câmaras perdidas pela CDU. Falta perceber as razões políticas disto.
O eleitorado da esquerda está fechado na lógica da recuperação dos prejuízos que teve com a troika. Aceita por isso o que a grande massa popular aceita como óbvio e “prático”: tudo se resume a recuperar rendimentos, não se pense em outras exigências políticas.
A via gradualista do BE e do PCP (“não se pode conseguir tudo de um dia para o outro”, tem repetido Jerónimo de Sousa; “não deixaremos de exigir mais”, promete Catarina Martins) incentiva esta visão das coisas e favorece portanto o PS, que é quem detém as alavancas da governação.
Apesar de se demarcarem do PS sobre outras questões políticas (União Europeia, dívida, défice, NATO), BE e PCP têm o cuidado de separar isso da governação corrente e de evitar que tais diferenças abalem a coligação e o curso da política. Para efeitos de política prática, “interna”, confundem-se portanto com o PS — dando a António Costa a vantagem de poder dizer “somos nós que concretizamos a recuperação”.
Os dois anos passados trouxeram, portanto, uma espécie de sindicalização da vida política nacional que arreda do horizonte das camadas populares qualquer ambição que não seja recuperar rendimentos. E se esta recuperação é indispensável, aquela sindicalização tem o efeito de despolitizar a massa popular e reduzir a zero a sua acção como agente político.
A insistência do PCP de que “este não é o governo de esquerda e patriótico” que defende, tenta marcar uma distância com o PS e o BE e procura dar a entender que o PCP vê a coligação como coisa circunstancial. A quebra eleitoral mostra que esta demarcação não teve eco — e, se o teve, funcionou ao contrário. Percebe-se porquê se entendermos que a actual coligação (mesmo sem ministros do PCP) é na verdade a materialização possível do governo de esquerda e patriótico, por mais que o tente negar Jerónimo de Sousa.
Um tal governo só pode ser um governo de aliança com o PS e forças de esquerda — um governo que agregue o lado esquerdo do regime, mas que não ponha em causa o regime, como agora sucede. Nesse compromisso não cabem veleidades radicais como a contestação da NATO ou da UE, ou a recusa em pagar a dívida, como agora sucede.
Medidas radicais exigem uma base social de apoio radicalizada, uma relação de forças claramente favorável à massa popular que ponha o capital, os credores internacionais, a UE, a NATO em respeito. Tivemos, na nossa experiência portuguesa, uma amostra dessa outra situação em 1974-75; e viu-se então como a iniciativa popular conseguia efectivas transformações políticas e sociais. Não é nada disto que está no horizonte da actual coligação nem na fórmula de governo do PCP.
Mas é possível dar passos nesse sentido. Não está em causa a política de recuperação de rendimentos, que é obrigatória. É preciso sim que a massa trabalhadora, a par disso, aproveite as condições — de algum modo favoráveis, enquanto a direita ainda não recuperou do abalo de 2015 — para reforçar a sua capacidade de luta, reivindicativa e política, e para ganhar independência face ao poder.