Uma chacina mantida sob silêncio

Urbano de Campos — 29 Agosto 2017

Mossul_reduxQuando a Rússia e a Síria mataram civis ao expulsar as forças da Al Qaeda de Aleppo, políticos e meios de comunicação dos Estados Unidos gritaram “crimes de guerra”. Mas o bombardeio liderado pelos Estados Unidos contra Mossul, no Iraque, recebeu uma resposta diferente, salienta Nicolas Davies (*), jornalista e activista norte-americano. No artigo de que publicamos largos extractos (**), o autor alerta para a campanha de mistificação conduzida pelo poder e pela comunicação social no sentido de esconder do público as dimensões da chacina que está a ser cometida. Uma campanha que começa nos EUA mas se prolonga pelos média servis de quase todo o mundo ocidental. Portugueses incluídos, claro.

O bombardeio de Mosul incluiu dezenas de milhares de bombas e mísseis lançados por aviões de guerra dos EUA e da “coligação” [EUA, Iraque, França], milhares de bombas de 110kg lançadas pelos Marines dos EUA da sua base “Rocket City” em Quayara, e dezenas ou centenas de milhares de granadas de 155mm e 122mm disparadas pela artilharia norte-americana, iraquiana e francesa.

Dizem os curdos

Relatórios de serviços secretos militares curdos no Iraque calcularam que os nove meses de cerco e bombardeio de Mossul para expulsar as forças do Estado islâmico mataram 40 mil civis. Esta é a estimativa mais realista até agora do número de mortos civis em Mossul. Mas mesmo este valor deverá estar abaixo do verdadeiro número de civis mortos.

Se o bombardeio deixou grande parte de Mosul em ruínas (como se pode ver aqui), então o grau da chacina entre a população civil não deve ser uma surpresa para ninguém. Mas a revelação dos relatórios dos serviços secretos curdos (feita pelo ex-ministro dos Negócios Estrangeiros iraquiano, Hoshyar Zebari, numa entrevista a Patrick Cockburn, do jornal Independent, do Reino Unido) deixa claro que serviços secretos aliados [EUA-Iraque] estavam bem conscientes da escala de vítimas civis durante toda essa brutal campanha.

Os relatórios curdos suscitam sérias dúvidas sobre as declarações dos militares dos EUA em relação às mortes civis nos seus bombardeios contra o Iraque e a Síria desde 2014. Recentemente, em 30 de abril de 2017, o exército norte-americano apresentou publicamente o número total de mortes civis causadas por todas as 79.992 bombas e mísseis que lançaram no Iraque e na Síria desde 2014 apenas como tendo sido “pelo menos 352”. Em 2 de junho, apenas alterou ligeiramente esta estimativa absurda para “pelo menos 484”.

A “disparidade” — a multiplicar quase por 100 — entre os dados curdos e os dados oficiais norte-americanos não podem ser uma questão de interpretação dos factos. Os números confirmam, como analistas independentes suspeitaram, que os militares dos EUA conduziram uma campanha deliberada para subestimar publicamente o número de civis que mataram na campanha de bombardeio no Iraque e na Síria.

Campanha de propaganda

O único propósito desta campanha de propaganda tão extensa conduzida pelas autoridades militares dos EUA é minimizar a reacção pública nos EUA e na Europa perante o assassinato de dezenas de milhares de civis para que as forças americanas e “aliadas” possam continuar a bombardear e a matar sem obstáculos políticos ou prestação de contas.

Seria ingénuo acreditar que as instituições corruptas do governo nos Estados Unidos ou os subservientes média empresariais vão tomar medidas sérias para investigar o número real de civis mortos em Mossul. Mas é importante que a sociedade civil global acorde para a realidade da destruição de Mossul e a chacina de seu povo. As Nações Unidas e os governos de todo o mundo devem responsabilizar os Estados Unidos pelas suas acções e tomar medidas firmes para impedir a chacina de civis em Raqqa, Tal Afar, Hawija e onde a campanha de bombardeio liderada pelos EUA continua sem cessar.

A campanha de propaganda dos EUA para fingir que as suas operações militares agressivas não estão a matar centenas de milhares de civis começou muito antes do assalto a Mossul. De facto, o exército dos EUA não conseguiu derrotar decisivamente as forças de resistência em nenhum dos países que atacou ou invadiu desde 2001, de modo que os seus fracassos no campo de batalha foram compensados por um sucesso notável numa campanha de propaganda doméstica que deixou o público americano em quase total ignorância acerca da morte e destruição que as forças armadas dos EUA provocaram em pelo menos sete países (Afeganistão, Paquistão, Iraque, Síria, Iémen, Somália e Líbia).

Manter a ficção

Em 2015, a organização Médicos para a Responsabilidade Social (PSR) co-publicaram um relatório intitulado “Body Count: Casualty Figures After 10 Years of the War On Terror”. Este relatório, de 97 páginas, examinou os esforços públicos para contar os mortos no Iraque, Afeganistão e Paquistão, e concluiu que cerca de 1,3 milhões de pessoas tinham sido mortas nesses três países.
Este número, em apenas três países, está em contraste chocante com o que os políticos e os média dos EUA contaram ao povo norte-americano acerca de uma guerra em expansão permanente travada em nosso nome.

Mais uma vez, encontramos uma grande discrepância — a multiplicar por cerca de 60 — entre o que o público foi levado a acreditar e uma estimativa séria do número de pessoas mortas. Os militares dos EUA, enquanto contaram meticulosamente e identificaram as suas próprias baixas nessas guerras, têm trabalhado arduamente para manter o público americano no escuro sobre quantas pessoas foram mortas nos países que atacaram ou invadiram.

Isso permite que os líderes políticos e militares dos EUA mantenham a ficção de que estamos a lutar nessas países em benefício dos seus povos, ao invés de matar milhões deles, reduzindo as suas cidades a escombros e mergulhando um país após outro em violência incontrolável e caos, situação para a qual os nossos líderes, moralmente falidos, não têm solução, militar ou outra.

Os civis como alvos

Quando os EUA, com George Bush, lançaram a sua campanha de “choque e pavor” contra o Iraque em 2003, Rob Hewson, o editor de uma revista internacional sobre comércio de armas, revelou que 20 a 25 por cento das mais recentes armas ditas “de precisão” dos Estados Unidos falhavam os alvos, matando pessoas e destruindo edifícios ao acaso em todo o Iraque.

O próprio Pentágono acabou por divulgar que um terço das bombas que caíram no Iraque não eram “armas de precisão”, e que, então, aproximadamente metade das bombas lançadas eram apenas “tapetes de bombas” à moda antiga ou armas ditas “de precisão” que muitas vezes falhavam os alvos.

Atrás de termos eufemísticos como “mudança de regime” e “intervenção humanitária”, o uso agressivo da força conduzido pelos EUA destruiu qualquer ordem existente em pelo menos seis países e em grandes partes de vários outros, deixando-os atolados em violência e caos sem controlo.

Em cada um desses países, os militares dos EUA lutam contra forças irregulares que operam entre as populações civis, tornando impossível atingir esses militantes ou milicianos sem matar um grande número de civis. Mas, é claro, matar civis apenas leva mais sobreviventes a juntarem-se à luta contra os estrangeiros ocidentais, garantindo que esta guerra assimétrica global continue a espalhar-se e a escalar.

Talvez 2 milhões de mortos

Os 1,3 milhões de mortos acima referidos para o Iraque, Afeganistão e Paquistão, são, ainda assim, uma estimativa conservadora, baseada em dados fragmentários. De qualquer modo, a estes há que somar as centenas de milhares de pessoas mortas na Síria, no Iémen, na Somália, na Líbia, na Palestina, nas Filipinas, na Ucrânia, no Mali e em outros países varridos nesta guerra assimétrica em constante expansão. E ainda as vítimas ocidentais de crimes terroristas desde San Bernardino a Barcelona e Turku. Assim, não é exagerado dizer que as guerras que os EUA desencadearam desde 2001 mataram pelo menos dois milhões de pessoas, e que o derramamento de sangue nem está contido nem diminui.

Como poderemos nós — o povo americano, em cujo nome todas essas guerras estão a ser travadas — assumir nós próprios responsabilidade e responsabilizar os nossos líderes políticos e militares por essa destruição em massa da vida humana, na maior parte inocente? E como vamos responsabilizar os nossos líderes militares e os média empresariais pela campanha de propaganda insidiosa que permite que rios de sangue humano continuem a correr sem denúncia e sem investigação através das sombras da nossa tão voraz, mas ilusória, “sociedade da informação”?

(*) Nicolas J S Davies é autor, entre outros textos, de “Blood On Our Hands: the American Invasion and Destruction of Iraq”
(**) Covering up the massacre of Mosul


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