Povos europeus vão pagando
“Erradicar o terrorismo” é mote para erradicar as liberdades
Manuel Raposo — 22 Agosto 2017
Como seria de esperar, o atentado de Barcelona deu azo a mais uma frenética campanha dos estados europeus em prol da aplicação de mais medidas securitárias e de limitação das liberdades cívicas. No meio da arenga habitual, foram insistentemente focados por comentadores e “especialistas”, em concerto, dois tópicos: um, a acusação (repetida por Marcelo e Costa) de que os atentados terroristas visam “destruir o nosso modo de vida democrático”, renovando assim a tese imperialista do “choque de civilizações”; e, outro, que é preciso ir mais longe na “integração” das comunidades islâmicas na Europa.
Os actos terroristas não procuram mudar nenhum modo de vida democrático na Europa, da mesma maneira que os ataques militares (muito mais mortíferos e destruidores) que europeus e norte-americanos têm vindo a fazer ou a patrocinar no Médio Oriente e em África não pretendem mudar, menos ainda “democratizar”, o modo de vida das populações — mas simplesmente aterrorizá-las e mantê-las submissas com o argumento da força militar.
Quem de facto modifica os padrões de vida democrática na Europa são os próprios governos europeus.
Lembre-se que a França está desde 2015 em estado de emergência e que o novo presidente Macron pretende “levantar” esse estado e emergência criando uma lei de segurança nacional (a votar em Novembro) que foi comentada como sendo “um estado de excepção permanente”, por integrar no direito comum medidas do estado de emergência em vigor.
Lembre-se também que a UE — que mal se entende sobre questões de natureza económica e arrasta os pés quando se trata de defender direitos laborais e sociais — se congratulou recentemente por ter feito “grandes progressos” em matéria de segurança, os quais consistem num reforço da cooperação entre polícias e serviços de segurança e em dotações suplementares para dotarem polícias e forças armadas de mais meios de intervenção.
Lembre-se ainda a pressa oportunista com que o PS fez sair da sombra a secretária de Estado Adjunta e da Administração Interna para anunciar uma proposta de lei que prevê o acesso das polícias, em tempo real, a imagens de videovigilância — com a particularidade de tal acesso prescindir de autorização judicial por se tratar de… casos de “perigo concreto”. Aí está um exemplo evidente de como o receio causado por um atentado em Barcelona serve de biombo para a banalização de medidas (antes, ainda assim, excepcionais) aplicáveis a qualquer espécie de “perigo concreto” que as autoridades definirão sobre as nossas cabeças.
As restrições às liberdades respondem, em primeira análise, aos ataques terroristas, mas são, elas mesmas, uma necessidade dos poderes europeus para porem a resguardo de contestação as suas políticas externas agressivas. As populações europeias estão assim a apanhar de ricochete as políticas imperialistas dos seus estados e governos — tanto na forma de actos de terror como na forma de crescente pressão policial.
Uma outra insistência da propaganda oficial está a ser a da “integração” das comunidades islâmicas para, argumentam, prevenir a “radicalização” dos seus membros. Concretamente, fala-se já em exigir às entidades associativas e religiosas não só uma espécie de profissão de fé nas regras democráticas (coisa que não é exigida a nenhuma outra confissão ou comunidade), mas também a sua colaboração com as autoridades policiais na denúncia dos elementos considerados “perigosos” ou “radicalizados”. Pretende-se assim que sejam as autoridades religiosas e as comunidades a policiarem os seus membros e a colaborarem com os corpos repressivos do Estado.
Esta ideia peregrina significa um recuo de mais de duzentos anos sobre o que a Revolução Francesa estabeleceu de separação entre a esfera da religião e a esfera da cidadania. É abrir a porta a uma guerra religiosa. As pessoas oriundas de países islâmicos, ou os seus descendentes, deixam de ser cidadãos com direito a professarem, se quiserem, uma religião e passam a ser considerados, todos eles, pela bitola de fiéis de uma confissão perigosa que têm de declarar fidelidade às leis do país — quando a maioria deles é natural do país.
Já estivemos mais longe dos campos de concentração em que o governo norte-americano aprisionou os cidadãos de origem japonesa vivendo nos EUA quando entrou em guerra com o Japão, em final de 1942, a pretexto de que poderiam ser espiões.
“Ir a fundo” na erradicação do terrorismo não tem nada a ver com as medidas policiais e persecutórias que a UE sucessivamente leva a cabo. E no entanto não é difícil enunciar medidas que acabariam com o flagelo da noite para o dia, fosse a UE aquilo que não é.
Bastaria pôr fim à intervenção das forças europeias nos teatros de guerra do Médio Oriente e África. Proceder a uma demarcação radical da política imperialista dos EUA.
Defender, nomeadamente nas Nações Unidas, o direito de plena liberdade política dos povos em causa, com adopção de medidas práticas nesse sentido. Ajudar à reconstrução dos países vandalizados pela guerra, nomeadamente pelo pagamento de indemnizações. Apoiar as forças políticas nacionais progressistas. Acabar com os monopólios e as concessões sobre a exploração dos recursos naturais desses países. Reconhecer o direito dos povos em causa a disporem plenamente dos seus recursos e a negociá-los em pé de igualdade.
Por exemplo.