O caminho para o impeachment de Trump
António Louçã — 6 Março 2017
Ao longo do último século, a história das presidências norte-americanas foi uma ininterrupta passerelle de vilões, cínicos, perversos, tarados, sanguinários, gananciosos ou mentecaptos. Houve entre os inquilinos da Casa Branca quem tivesse alguns destes atributos e houve quem os tivesse todos. Mas é verdade que Donald Trump está para além destas características comuns ou recorrentes das várias presidências.
O novo presidente dos EUA já foi comparado com Nixon pela sua paranóia obsessiva, com Reagan pela sua estupidez ortorrômbica, com Bush filho pela sua ignorância esparvoada. Também se esboçaram comparações com Truman, no que respeita à apetência pelo gatilho nuclear, com Kennedy ou Clinton no que respeita à indiscreta voracidade sexual e, no seu caso, a um exibicionismo verdadeiramente fanfarrão.
Todas estas analogias, com o que têm de verdadeiro, correm o risco de desviar o foco das atenções para uma dimensão psicológica. Com todas as suas originalidades, o novo presidente seria, desse ponto de vista, um caso clínico, a pedir tratamento – ou internamento – para que se pudesse retomar o business as usual.
Para garantir o regresso à normalidade, já houve quem depositasse esperanças na domesticação pelo exercício do poder. Trump, outsider do sistema político, inundava o Twitter com javardices até tomar posse. Daí em diante, os tarimbeiros da administração, no estilo da famosa série britânica “Yes, minister”, se encarregariam de fazer-lhe ver que decisões é preciso tomar e mesmo que linguagem convém adoptar.
Sem cairmos em fazer uma amálgama demasiado precipitada com a ascensão do nazismo, devemos contudo notar que esta banalização da novidade também ocorreu nos idos de 1933: os conservadores assustados que tinham aberto a Hitler, de par em par, as portas do poder logo se apressaram a prometer que ele entraria nos eixos assim que o perfume da chancelaria fizesse do outsider um estadista como os outros. A novidade agora pode ser diferente, e é, mas é uma novidade que não se deixa exorcizar com essa esperança ingénua na domesticação pelo exercício do poder.
O primeiro mês do mandato presidencial de Trump encarregou-se de varrer quaisquer ilusões a esse respeito, com a catadupa de decisões tomadas: o nepotismo de algumas nomeações e o sectarismo supremacista de outras, a proibição da entrada de muçulmanos vindos de sete países do índex islamofóbico (poupando a Arábia Saudita!), o conflito com o México sobre o muro e o seu financiamento, o anúncio de drásticas medidas proteccionistas a augurar uma guerra comercial, as declarações ameaçando restringir o acesso da China às ilhas vizinhas e as declarações ameaçando cancelar o acordo com o Irão, o braço de ferro com os tribunais, a campanha contra a imprensa, a luta surda com os serviços secretos, a pressão para militarizar os orçamentos de parceiros da NATO, o incremento dos gastos militares e a justificação de que os EUA têm de ganhar as próximas guerras em que entrarem.
Um macaco acabado de snifar uma linha inteira de coca não faria, aos saltos numa loja de porcelana fina, mais estragos do que Trump tem feito nos delicados equilíbrios da diplomacia internacional e das instituições do seu país.
Daqui não pode inferir-se que esteja agora na ordem do dia uma política de “mal menor”. A tentação é grande, porque o frenesi trumpiano de subverter todas as rotinas faz parecer mais benigna qualquer outra variante da política imperialista. Mas não se trata de comparar as diversas variantes para estabelecer uma hierarquia de males maiores e menores. Trata-se de combater esta erupção de decisões explosivas sem recair nas fórmulas políticas que constituem verdadeira causa da doença.
Longe de ser um modelo oposto pelo vértice ao novo inquilino da Casa Branca, a presidência de Obama, com uma política profundamente anti-social, lançou nos braços do candidato populista os votos suficientes (embora minoritários) para este ganhar a eleição. Sim, Trump vai aumentar em 54 mil milhões de dólares o já astronómico orçamento militar dos Estados Unidos ao mesmo tempo que trata de desmantelar o Obamacare. Mas Obama deu aos banqueiros uma prenda de 700 mil milhões, mal chegou à presidência, para os ajudar a saírem da crise do subprime, que eles próprios tinham causado.
Sim, Trump é um racista que tem defendido a impunidade policial em numerosos homicídios e procura inverter os papéis de vítima e criminoso lançando contra o movimento “Black lives matter” acusações dignas da Ku Klux Klan (que por alguma coisa festeja a sua eleição). Mas o primeiro presidente negro dos EUA jamais pôs em causa a Justiça racista do país. Ao fim de dois mandatos, os afroamericanos continuam a representar uma percentagem exorbitante na população prisional norte-americana e, em especial, nos vários “corredores da morte” estaduais. Simbolicamente, não foi reaberto o processo de Mumia Abu Jamal, a purgar a pena perpétua resultante de uma farsa judicial. E Trump, sem vergonha alguma, assume a prática da tortura. Mas Obama não cumpriu no primeiro nem no segundo mandato o que parecia ser a mais inabalável das suas promessas – fechar esse centro de tortura que é Guantánamo.
Sim, Trump é um perigo de guerra constante. Mas Obama recebeu um Nobel da Paz em pré-pagamento e foi a correr fazer a guerra na Líbia e intervir na guerra civil síria. Trump provoca a China e o Irão, como Obama, acolitado pela NATO, provocava a Rússia. Trump ameaça rever o discurso de uma só China no Extremo Oriente e o discurso de dois Estados no Médio Oriente. Mas rapidamente percebeu que lhe convém mais manter, como Obama, uma política de duas Chinas com o discurso de uma só, e manter a colonização efectiva de toda a Palestina com a miragem de um Estado palestiniano.
Não se pode ignorar as novidades inquietantes que Trump veio trazer à política norte-americana e mundial. Mas tão-pouco se pode ignorar as continuidades do trumpismo com o legado anterior e as facilidades que lhe proporcionou o establishment conservador – democrata e republicano – que agora se inquieta com este Frankenstein incontrolável. E o regime democrático burguês, tal como lhe abriu as portas, irá agora continuar a dar-lhe caução e cobertura. Que não se espere do sistema judicial norte-americano um impeachment: uma iniciativa nesse sentido pôde surgir contra Clinton, por um caso com uma estagiária, mas dificilmente poderia surgir contra Trump, por brincar com o botão nuclear.
O caminho para o impeachment não passa pelas instituições parlamentares ou judiciais – passa pela rua. Apontam esse caminho as centenas de milhares de pessoas que, logo em 21 de janeiro, dia seguinte à investidura, se manifestaram contra a misoginia do novo presidente. Apontam-no as centenas que acorreram aos aeroportos, sem esperarem uma palavra dos tribunais, para protestarem contra a proibição da entrada de muçulmanos.
O que está a mudar nos EUA não é apenas a presidência, mas também a resposta de massas. Movimentos como “Occupy Wall Street” ou o mais massivo “Black lives matter” praticamente só tiveram para expressar-se nas eleições o canal que lhes proporcionava a candidatura de Bernnie Sanders – como é da natureza, sempre limitada e distorcida, das vias de expressão eleitorais. Agora, continuam na rua, transformados sob o influxo de uma situação política muito mais perigosa. Impactam sobre o conjunto da sociedade norte-americana e produzem reagrupamentos notáveis, como é o de atraírem novamente à luta pelos direitos cívicos ameaçados um sector importante da comunidade judaica.
O movimento de resistência contra o autoritarismo trumpiano tende a escapar à síntese eleitoral, sempre redutora e circunstancial. A sua referência histórica poderá ser, cada vez mais, a dos movimentos das décadas de 1960-70, pelos direitos cívicos e contra a guerra do Vietname, a da sublevação de cada campus universitário, a da grande manifestação pacifista de meio milhão de pessoas em novembro de 1969. E foi essa grande enchente, recordemos, que confluiu no Watergate e no derrubamento de Nixon. Seja qual for o desenlace institucional para a crise de regime que vivem os EUA – um desenlace tipo Watergate ou outro –, ele só será desencadeado pela desobediência cívica, pela acção directa, pela luta de massas.