A pacífica estatização da CGD
Manuel Raposo — 15 Outubro 2016
Não é estranho que o debate político em torno da Caixa Geral de Depósitos tenha sido tão brando? Depois de o governo Coelho-Portas ter feito tudo para a enfraquecer e preparar o terreno para a sua privatização, seria de esperar que a opção do governo de António Costa de capitalizar o único banco do Estado e de reforçar a sua natureza pública tivesse a mais encarniçada oposição por parte do PSD e do CDS, para não falar do resto da banca. Mas não — a discussão resumiu-se a questões laterais sobre a forma como o processo foi conduzido e sobre as trapalhadas que o acompanharam. Este desviar de atenções da direita mostra que, para o capital nacional, o caminho não podia ser outro.
O propósito de privatizar a CGD por parte do governo PSD-CDS, em pleno acordo com a troika, tinha um fito evidente: eliminar a concorrência que a Caixa faz à banca privada e entregar a esta (portuguesa ou, mais provavelmente, europeia) a fatia da actividade financeira que ainda está na esfera pública. Havia porém um problema: toda a banca portuguesa, mas em especial a banca privada, estava e está em colapso.
A crise declarada em 2008, a que se somam as medidas de austeridade aplicadas desde então, reduziu drasticamente os rendimentos e as poupanças da população portuguesa, e levou quase a zero o investimento produtivo. Resultado: diminuição dos depósitos dos particulares, redução dos empréstimos bancários, queda do volume dos juros.
Mais, a crise funcionou como um revelador: quase todos os bancos privados portugueses foram ou são constituídos por grupos de amigos que usam as poupanças dos depositantes em grande parte para fins próprios — seja em investimentos seus de seriedade e rentabilidade mais do que duvidosas, seja simplesmente em desfalques comparáveis a roubos de caixa.
Sem a entrada contínua de dinheiro fresco, ficou a descoberto o sistema de fraudes e o nepotismo em que a maioria dos bancos medravam. Conhecemos os variados exemplos: BPN, BPP, BES, Banif, Montepio, BCP…
Privatizar a Caixa significaria portanto, como sucede hoje na venda de qualquer outro banco nacional, colocá-la na mão de um grupo financeiro internacional — que, naturalmente, estará interessado em captar os depósitos dos portugueses, mas não está especialmente interessado em investir na economia portuguesa. Ou seja, com a eliminação da CGD deixava de haver banca nacional; não era apenas o Estado que se desfazia de um instrumento “público”, era o capital nacional (isto é, o capital como um todo, independentemente dos seus diferentes ramos) que de novo perdia capacidade de intervenção na esfera financeira e de controlo do investimento.
Por isto o assunto ganhou, na linguagem da actual maioria governativa-parlamentar, foros de “interesse nacional”. Por isto também a direita optou por se calar. “Interesse” (do capital) “nacional”, portanto.
Qual capital nacional? Sobretudo o pequeno e médio capital, e todo o que não prova as delícias da globalização, que se queixam amargamente da banca por não conceder empréstimos, ou por cobrar juros ruinosos. A CGD surge-lhes (como antes o falhado Banco de Fomento) como uma possibilidade de obterem por via do Estado aquilo que a banca privada não lhes concede.
O “interesse nacional” de que se fala é, portanto, importa explicitá-lo, o interesse dos sectores mais débeis do capitalismo português — aqueles que pela sua dimensão ou natureza estão excluídos das grandes fontes de financiamento, voltadas sobretudo para as economias mais poderosas.
A necessidade de uma CGD nacionalizada, isto é, de uma finança sob controlo estatal, surge para substituir o rebotalho em que se transformou a finança privada portuguesa. É uma tentativa de saneamento para obviar à falência anunciada da banca privada; para tentar dar um uso menos pessoal e menos mafioso aos recursos financeiros captados no país.
Vale aqui uma comparação. Enquanto em 1975 a nacionalização da banca (impulsionada pela acção dos trabalhadores e respondendo à sabotagem económica dos capitalistas) contribuiu para enfraquecer, temporariamente, o poder político do grande capital — a presente recapitalização da CGD como banco público destina-se a assegurar a sobrevivência do capital (sobretudo pequeno e médio) diante da falta de comparência da banca privada, em colapso ou dedicada a outros jogos.
A tanto se resumem hoje os “méritos” da banca do Estado — uma tentativa de adiar a corrosão causada em todo o sistema económico pela crise capitalista.