O “projecto europeu” realmente existente

Manuel Raposo — 1 Agosto 2016

Cameron-BrexitSó a evolução próxima (e não tão próxima) dos acontecimentos pode dizer exactamente quais os efeitos do referendo que decidiu a saída do Reino Unido da União Europeia. Mas o certo é que um abalo está já em curso, quer no plano político e partidário, quer no plano económico. No entanto, mais do que causa da agitação que se propaga à Europa e ao mundo, a viragem na Grã-Bretanha é sintoma da instabilidade que atinge o planeta, e da incapacidade das burguesias dominantes para debelarem a crise em que o capitalismo se vê atascado desde 2008.

As vozes mais inquietas anunciam, lamentosas, o fim do “projecto europeu”. Talvez a inquietação não tenha tanta razão de ser.
O que é, para lá das palavras, o “projecto europeu”? É a fusão de capitais das maiores potências do continente, arrastando para a sua órbita os restantes capitais nacionais. O “projecto” mostrou sobejamente o seu carácter imperialista, repressivo, fautor de guerra, antidemocrático, destruidor das poucas vantagens sociais obtidas pelas classes populares europeias.

O “projecto” tem tido à cabeça nos últimos anos, de forma mais evidente desde o rebentar da crise mundial em 2008, a Alemanha — o seu capital, a sua economia, as suas classes dirigentes. Esta preponderância abriu conflitos com os capitalismos que se lhe comparam em poderio, casos da França e do Reino Unido, sempre com vantagens para a Alemanha. Mas, sobretudo, provocou o esmagamento dos capitalismos europeus periféricos (dentro e fora da União), drenando para as grandes potências do continente toda a riqueza capaz de ser captada. Criou, sobretudo no sul e no leste da Europa, regiões de mão de obra barata, muitas delas desindustrializadas à força, quase totalmente dependentes da produção dos grandes centros.

Este é o motor e o desiderato da União Europeia. A crise mundial apenas veio acelerar e tornar mais premente todo o processo de concentração de capital. Vê-se nas políticas dominantes: impossibilitado de comprar o sossego das classes médias e trabalhadoras com crescimento económico, o capitalismo europeu impõe-se-lhes como um rolo compressor — austeridade, restrição de liberdades, conflitos étnicos e religiosos, divisão social, discriminação nacional. Este é o “projecto europeu” real.

Este caminho está posto em causa pela saída do Reino Unido? Há fortes razões para acreditar que não. Enquanto o capital europeu, com o grande capital à cabeça, mantiver a capacidade de se entender e repartir as vantagens da sua europeização, não vai ser a simples expressão da “vontade dos cidadãos” (em referendos, eleições, etc.) que pode mudar este rumo. Isso mesmo se irá ver nas arrastadas negociações que se preparam entre a UE e o Reino Unido.

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