A Turquia e o síndroma de Salomé

António Louçã — 25 Julho 2016

ErdoganNum mundo em que os direitos humanos continuam a impregnar o discurso politicamente correcto, o contragolpe de Erdogan vem recordar-nos como é precário o direito de asilo, como ele se joga cinicamente à mesa do póquer geoestratégico e como as cabeças oferecidas em bandeja continuam a ser contrapartida de vantagens obtidas nesse póquer.

No momento de escrever estas linhas, o Departamento de Estado norte-americano continua a deixar em aberto a possibilidade de oferecer a Erdogan a muito reclamada cabeça do exilado Fetullah Güllen. A este, de pouco serve ter repudiado o falhado putsch militar. O seu destino depende de outras negociações que algum dia um novo Wikileaks exporá aos olhos do mundo.

Entretanto, o governo “esquerdista” do Syriza continua a deixar em aberto a possibilidade de oferecer ao mesmo Erdogan a cabeça dos tripulantes de um helicóptero que foi refugiar-se na Grécia. A advogada de defesa dos militares refugiados já disse que há motivos para recear que uma pena de morte restabelecida na Turquia venha a ser aplicada retroactivamente. Erdogan é bem capaz de violar o princípio básico de todas as normas jurídicas e aliás é para isso mesmo que quer restabelecer a pena de morte.

Entretanto, Israel não oferece a Erdogan, em bandeja, nenhuma cabeça que ele urgentemente requeira mas, em contrapartida, oferece-lhe a impunidade — retroactiva, cá está a retroactividade outra vez — por um milhão e meio de cabeças arménias, vítimas do genocídio otomano de 1915. Para a reconciliação pelo massacre israelita de pacifistas turcos, a bordo do navio Mavi Marmara, tudo valia da parte do Governo israelita: pedido de desculpas, indemnização às famílias e também isto de decretar que não houve genocídio do povo arménio — já agora, uma ideologia que dá jeito para manter o Holocausto num pedestal de hecatombe sem paralelo na História.

A reconciliação israelo-turca prossegue sem ser perturbada pela intentona putschista nem pelo contragolpe, o que não deixa de ser interessante e significativo. Com efeito, o triunfo do golpe egípcio, com o seu cortejo de brutais violações de direitos humanos, abriu as portas a uma melhoria nas relações com Israel e isso foi atribuído ao seu carácter anti-muçulmano. Na Turquia, pelo contrário, sai vitorioso o contragolpe fundamentalista islâmico e mesmo assim prossegue e aprofunda-se a reconciliação com Israel. Mais uma vez se confirma que, independentemente de etiquetas religiosas, Israel procura a aliança com as potências regionais mais reaccionárias — ontem o Egipto, hoje a Turquia, amanhã, ou antes, a Arábia Saudita.

E, para não se dizer que Erdogan apenas reclama cabeças, sem dar nenhumas em troca, ele não perdeu tempo em deter os dois pilotos turcos que em novembro do ano passado tinham abatido no espaço aéreo sírio um avião de combate russo SU-24. Não entregará ao presidente russo as cabeças dos dois pilotos turcos, mas certamente irá exibi-las naquela bandeja em que são expostos os vários trunfos da sua política externa.


Comentários dos leitores

afonsomanuelgonçalves 27/7/2016, 12:42

Sim, de facto, quer na Turquia ou na Grécia faz falta e é urgente criar um partido que represente a pequena e média burguesia filantrópica que em Portugal, o Bloco de Esquerda cumpre escrupulosamente e com zelo imaculado. Isso permite uma grande satisfação aos apaniguados serviçais urbanos que vêem os pobres serem assistidos com grande "humanidade" e encherem as «gaiolas» onde vivem com muitos telemóveis e outras lixeiras muito úteis para entreter a pequenada. A Turquia ainda não deu esse passo, absolutamente necessário para atingir a sociedade democrática, et voila, a liberdade que só a democracia "autêntica" nos oferece sem precisarmos de mais nada. A Turquia semi-fascista e semi-islâmica quer um meio termo e vai encontrá-lo na tortura e na luta contra o "terrorismo" e contra a filantropia utópica do Bloco de Esquerda. Nesta equação simples não é difícil de saber quem será o vencedor.


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