Brasil: um golpe à paisana

Manuel Raposo — 26 Abril 2016

BrasilpobrezaO carnaval montado na Câmara dos Deputados brasileira, a que todo o mundo pôde assistir em directo na noite de 17 de Abril, não pode ter outro nome que não seja o de um golpe de Estado — palaciano, no caso. A corte de deputados e de juízes sustentada pelo erário publico e pela corrupção descarada confabulou-se para impugnar a presidente e para afastar o Partido dos Trabalhadores do poder. Isto, a ninguém escapa por mais voltas que se dê ao assunto. A pergunta que resta à esquerda é saber por que razão Dilma, Lula e o PT chegaram ao ponto de serem corridos por um bando de malfeitores, aparentemente com a maior das facilidades. E qual vai ser a resposta dos trabalhadores e dos pobres.

A corrupção como argumento

Golpe porquê? Simplesmente porque não há acusação contra a presidente que, à luz da Constituição, sustente a destituição do cargo. O que há, sim, da parte da direita, é a oportunidade política de afastar o PT do poder e impedir uma hipotética recandidatura de Lula da Silva. Toda a direita brasileira converge neste propósito, graças a uma Justiça (inteiramente partidarizada) apostada em usar o argumento da corrupção como varapau político.

O golpe não está na denúncia da corrupção, ou na criminalização dos culpados, está em direccionar as provas contra o PT, queimando a chefe do Estado e o governo, e em deixar na sombra todos os demais — e assumir a postura beata de quem quer purificar o regime. Basta dizer que 60% dos 513 deputados que votaram a proposta de destituição estão a contas com a Justiça e que os legais sucessores de Dilma (o vice-presidente e o líder da Câmara dos Deputados) estão, eles mesmos, envolvidos em actos de corrupção até ao pescoço.

Mas aqui, o PT, Lula e Dilma só têm de se queixar de si mesmos. Nos 13 anos que leva no poder, o PT ganhou a larga influência institucional que detém por todo o país abrindo portas a oportunistas e envolvendo-se nos esquemas de compadrio que encharcam as estruturas do poder. Era de perceber que, quando chegasse o momento político adequado, a direita, que distingue os filhos dos enteados, não iria tratar a corrupção do PT como trata a corrupção dos seus — iria usá-la como a prova necessária para degradar o PT diante das classes populares e para o afastar como indesejável.
O PT pôs-se a jeito: integrou-se no esquema que cruza os interesses partidários com os interesses do capital; como partido do sistema, adoptou as regras do sistema.

Não é só isto, porém, que permite compreender a agitação em que o Brasil entrou. O fundo da questão é outro.

Quando os negócios prosperam

A política popular do PT granjeou-lhe amplos e justos apoios. Como tem sido destacado, milhões de brasileiros saíram da pobreza extrema graças às medidas sociais empreendidas durante os mandatos de Lula e, em parte, de Dilma. Mas isso só pôde ocorrer enquanto houve crescimento, e grande crescimento, económico. Nessa altura “dava para todos”: grandes lucros para o capital (indústria, agro-indústria, petróleo, finança, etc.) e, comparativamente, as migalhas do costume para as massas trabalhadoras.
O que fez a burguesia brasileira tolerar no poder o PT e a sua política popular foi o facto de os negócios navegarem de vento em popa — um pouco à semelhança da social-democracia na Europa do pós guerra.

Quando sobrevém a crise

Tudo mudou quando a crise mundial desencadeada em 2008-2009 — que parecia ter poupado quatro ou cinco países, entre eles o Brasil, que mantinham taxas elevadas de crescimento — se abateu, afinal, também sobre estes aparentes oásis capitalistas. Depois de ter crescido 7-8% em 2010 — com picos de 5-6% na década anterior — a economia brasileira decaiu bruscamente, chegando a um crescimento quase nulo em 2014 e a uma recessão de 3,8% em 2015. Entre 2014 e 2016, calcula-se que o PIB per capita cairá 10%.

Desde 2012-2013, a base material para a política social do PT desapareceu — já não “dava para todos”. Por um lado, as medidas impopulares, os cortes nas prestações sociais, a renegação do programa eleitoral por parte de Dilma tiveram o efeito de minar a base de apoio popular do PT. Por outro lado, a travagem na subida dos rendimentos e a perspectiva de um “ajustamento económico” (como a “austeridade” na Europa) levam as classes médias, numa busca ilusória de protecção, para o campo da burguesia e da direita — gritando em coro, alto e bom som: “os proletários que paguem a crise”.
As grandes manifestações de 2013 e a reeleição tangencial de Dilma em 2014 foram o prelúdio do que agora se vê.

Fim do pacto

Diante da crise declarada, o instinto de classe leva a burguesia a tomar medidas drásticas a respeito do poder político. Se bem que nunca tenham largado as rédeas do poder, menos ainda abdicado da sua hegemonia (assegurada, quanto mais não seja, pela rede de corrupção ligando o Estado às empresas), as classes dominantes brasileiras querem, mesmo assim, ver-se livres do compromisso que aceitaram na década e meia passada de vacas gordas. Preparam-se, assim, sem partilha, para os confrontos sociais que a quebra económica já está a trazer. Para manietar os pobres e remetê-los ao silêncio, a burguesia precisa de um governo de plena confiança e não de quem faz política a conciliar interesses (que agora se vê serem antagónicos). Para o capital, a conciliação, o pacto social, terminou — porque já não rende.

A hora do povo

Pelos testemunhos da imprensa e de comentadores, esta batalha política da burguesia brasileira traz ao de cima um profundo ódio de classe: acusações de “comunismo” ao PT, comparações com o regime venezuelano, perseguição nas universidades aos professores que “espalham o marxismo”, apelos abertos ao golpe militar, reabilitação de torturadores da ditadura, aversão aos “pobres que andam de avião”, ataque à lei que protege os direitos dos empregados domésticos (7 milhões em todo o Brasil), rejeição do plano governamental de contratar médicos para as regiões mais pobres.
Vão os pobres e as massas operárias ficar calados? Vão resignar-se sem luta a perder os poucos ganhos de que beneficiaram nos anos de crescimento? Ou vão devolver, como é justo, o ódio de classe de que são alvo?

A dificuldade do PT em contra-atacar esta ofensiva da direita, mostra as debilidades do seu poder, apesar das medidas populares que tomou. O PT levou ao limite o jogo que decidiu jogar: defesa do regime e das instituições, salvaguarda do poder do capital, manutenção da rede de influências ligando o Estado e as empresas, partilha dos ganhos económicos enquanto os houve, recuo nas políticas sociais quando a crise sobreveio. Mesmo agora, quando está em clara minoria nos órgãos cimeiros do Estado e a destituição é uma forte probabilidade, parece insistir no jogo institucional até ao fim — em vez de fazer apelo à massa do povo para derrotar a direita.

O desembocar desta via democrática burguesa (que foi perdendo nos últimos anos a coloração de “esquerda”), pelos vistos, é um beco: ou as forças populares, os operários, a massa dos trabalhadores pobres decidem afrontar as classes burguesas e o regime, reerguem a luta por objectivos sociais e contra-atacam o golpe em marcha — ou o golpe leva a melhor e, pelos propósitos anunciados, o plano será fazer reverter os ganhos do povo, quer materiais quer políticos.


Comentários dos leitores

afonsomanuelgonçalves 28/4/2016, 11:52

Não tenho dúvidas que o golpe leva a melhor na "melhor" tradição de luta e resistência da esquerda do Brasil. Lá como aqui em Portugal a esquerda limita-se a jogar à defesa com a habitual preocupação de que a burguesia irritada pode ser perigosa de mais. É o costume; luta-se com punhos de renda, fazem-se críticas à desumanidade e à ganância de uma clique da burguesia capaz de desfazer um povo se este se atrever a desafiá-la sem medo. Os sindicatos domesticam, os partidos representativos do trabalho controlam e lamentam as safadezas e o povo leva mais uma dose de sacrifícios para salvar a Pátria em crise determinada pela "conjuntura".


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