O folhetim do Panamá

Pedro Goulart — 14 Abril 2016

papeis-do-panama-ali-baba_cropAs revelações diariamente vindas a público a partir dos chamados Papéis do Panamá são claramente orientadas e ocupam grande parte do espaço informativo e de debate. Até agora não nos têm surpreendido: limitam-se a revelar alguma coisa do que já sabíamos ou pressentíamos sobre as múltiplas e habituais operações financeiras de muita gente das classes dominantes. Só os distraídos podem estar seriamente indignados.

Antes de prosseguirmos, porém, importa dar uma explicação para que melhor se possa avaliar as informações vindas a público e as que irão surgindo — e o seu valor relativo.

Os ficheiros referentes aos chamados Papéis do Panamá foram entregues anonimamente ao diário alemão Süddeutsche Zeitung e este, por sua vez, entregou-o ao Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação(ICIJ). Este consórcio tem sede em Washington (EUA), reuniu para este trabalho 370 jornalistas de mais de 70 países e é financiado por fundações ligadas aos Rockefellers, Soros, Ford, Jewish Community Federation ou Microsoft, etc. Mais, segundo o jornal britânico The Guardian, a prioridade adoptada pelo ICJI foi o apuramento dos movimentos de capital para territórios “offshore” por parte de países e titulares de cargos públicos alvos de sanções internacionais. Isto é, destina-se particularmente a atingir países e personalidades não gratas às democracias ocidentais capitaneadas pelos Estados Unidos da América. E o mesmo jornal admite, igualmente, que parte significativa destes documentos se manterá privada.

Assim, dados os apoios financeiros e os objectivos fixados, a objectividade da investigação e da informação a vir a público irá ficar significativamente comprometida.
Mesmo assim, a publicação dos ficheiros da Mossack Fonseca — um escritório de advocacia com sede no Panamá e que oficialmente, nas últimas décadas, se dedicou a gerir fortunas — dá-nos uma ideia da grandeza do problema. São cerca de 11,5 milhões de documentos e mais de 214.000 entidades “offshore” que estão envolvidas em operações financeiras em mais de 200 países e territórios em todo o mundo. Na sua maioria, estas 214.000 entidades revelam um esquema global de enriquecimento ilícito e de lavagem de dinheiro, envolvendo chefes de Estado, capitalistas, banqueiros e celebridades, que usaram paraísos fiscais para esconder dinheiro e património.

Trata-se de um conjunto de esquemas que desvia importantes riquezas dos países e as cujas consequências para as populações e Estados são, sobretudo: mais dívida pública, mais desigualdade social, mais impostos sobre os trabalhadores, menos saúde, menos educação, menos segurança social e emprego. E, no que respeita a Portugal, surgem nos ficheiros da Mossack Fonseca, em várias jurisdições, 244 empresas e 34 indivíduos.

Mas aqui coloca-se uma outra questão: se a Mossack Fonseca é a quarta maior organização no sector de criação de empresas em “offshore”, onde estarão os ficheiros das três maiores organizações do sector? E que fraudes continuam estas organizações a tramar?

Saídas bloqueadas

A propósito dos tão falados paraísos fiscais, convém perguntar quais as medidas que foram tomadas pela União Europeia na sequência do chamado caso LuxLeaks (escândalo do Luxemburgo) em 2014? Parece que as coisas, passadas as primeiras “indignações”, ficaram praticamente na mesma. Quem manda na Europa e no mundo não está interessado em bulir com os interesses das classes dominantes.

Lembramos que Jean- Claude Juncker reconheceu a existência de “engenharia fiscal”, quando ele governante do seu país. Milhares de empresas de todo mundo, incluindo algumas grandes multinacionais, utilizaram o Luxemburgo para fugir aos impostos através de acordos secretos com as autoridades. E as empresas canalizaram “centenas de milhares de milhões de dólares”, poupando milhares de milhões em impostos. Entre as empresas beneficiadas estavam a Pepsi, a IKEA, a seguradora AIG e o Deutsche Bank. A PricewaterhouseCoopers ajudou empresas multinacionais a conseguir pelo menos 548 acordos fiscais em Luxemburgo de 2002 a 2010.

Na situação actual, nesta fase senil do capitalismo, não é de prever que o escândalo suscitado pelos Papéis do Panamá possa resultar em algo regenerador do sistema. Não basta mudar alguma coisa para que o essencial se altere. Não basta acabar com o “offshore” da Madeira, como pretende o BE, ou simplesmente combater a corrupção e as desigualdades como pretendem alguns. Também as exigências da CGTP — o fim dos paraísos fiscais, a aplicação de uma taxa sobre as transacções financeiras, o reforço do investimento no combate à fraude e evasão fiscal e a publicação de contas detalhadas pelas empresas multinacionais nos países em que operam — são óbvias, mas assentam na ilusão de que é possível limpar o capitalismo actual das suas mazelas sem o pôr em causa como sistema de exploração do trabalho.
Mas, por isso mesmo, é preciso reforçar a ideia de que a luta diária não pode perder de vista a necessidade de ruptura com o capitalismo.


Comentários dos leitores

leonel clérigo 15/4/2016, 13:21

“OFFSHORE(s)” E CONSEQUÊNCIAS LÓGICAS DA MOEDA INCONVERTÍVEL DOS ANOS 70: O DÓLAR “PURO”
O texto de PG fornece alguns dados importantes ao leitor menos avisado - ou também mais preguiçoso, como eu - para ajudar a orientar na névoa dos “Offshore(s)”, névoa que a reaccionária Comunicação Social dos nossos dias fabrica “missionariamente” sob a velha “táctica”: “é preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma” ou, de preferência, que ande para trás. E não deixa de ser curioso poder apreciar como as ”boas intenções” democráticas do burguês - como a “missão” da “imprensa livre” - vão caindo umas atrás das outras. Serão já efeitos da gigantesca turbulência que se avizinha?…
1 - Mas gostaria de notar que, no final do texto de PG, fiquei com a sensação - mas admito estar enganado - que o Partido BE (a luta Política) é colocado “ao mesmo nível” da Confederação Geral dos Sindicatos Portugueses - CGTP (a luta Económica). E porque julgo que as “funções” e “responsabilidades” de cada “nível” são diferentes, a crítica “unificada” às duas organizações ou, mais precisamente, o entendimento da CGTP como se fosse um Partido Político (a "correia de transmissão" do PCP), não é muito correcta.
2 - Será que o “tempo” fez esbater as diferenças entre níveis de organização e daí, os correspondentes “níveis” de reivindicações e lutas ou seja, a existência de vários “níveis” na complexidade da luta de classes? Ou estaremos “a pagar” ter-se metido Dimitrov debaixo do tapete, o mesmo tapete do “totalitário” Estaline? A “Frente Única” não é só uma táctica “defensiva”: trás também dentro dela a “ofensiva” e, quem vê um só destes aspectos, não estar a ver bem o filme. É certo que a passagem de uma à outra não vem nos “livros” mas, como se costuma dizer, “quem tem unhas é que toca guitarra…” Ou “viola…” como outros preferem dizer.

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