Episódios de uma mudança política (II)
O significado do ‘Que se lixem as eleições’
Manuel Raposo — 8 Fevereiro 2016
Quando Passos Coelho, numa bravata própria de feirante, a três anos de distância, disse que se estava a lixar para as eleições (“o que interessa é Portugal”…), percebeu-se que, com o tempo, o discurso iria mudar. Mas poucos talvez adivinhassem o sentido preciso que a frase iria tomar depois do 4 de Outubro de 2015.
A forma assanhada como a Coligação se quis manter no poder, mesmo sem maioria para o conseguir, os argumentos trogloditas usados por todos os seus apaniguados, o apoio descarado do patronato a Cavaco para não empossar o governo de Costa, o clima de golpe de Estado que a direita criou — tudo isto mostrou, da parte da burguesia, um outro sentido, útil e concreto, para a frase de Coelho, e esse sentido é: que se lixe a democracia, que se lixe o parlamento, que se lixe a vontade dos eleitores, tudo vale para manter o poder.
Este episódio mostrou uma unidade essencial de propósitos da direita que merece toda a atenção. Percebe-se: a crise, como os factos mostram, não é apenas uma crise de negócios, exclusivamente “económica”. Ela manifesta-se na corrupção das instituições, no esvaziamento das fórmulas democráticas, põe a nu o carácter de classe do Estado, desmente a existência de interesses “nacionais” que não sejam os da burguesia, mostra a precariedade das liberdades e dos direitos da massa trabalhadora quando o interesse do capital é abalado. Estes factos contribuem para que o povo despreze as instituições e veja no poder, e naqueles que o exercem, o poder das classes dominantes — e não, como a burguesia pretende, o poder indistinto da “nação”, comum a “todos os cidadãos”. O que emerge da situação que vivemos é essa “característica essencial do Estado” que, no dizer de Engels, consiste “num poder público distinto da massa do povo”.
Na percepção instintiva deste facto radica o desespero da direita.
Se o espectáculo que a direita deu após 4 de Outubro se deveu a uma pequena deslocação à esquerda do eleitorado — que de modo nenhum pôs em causa qualquer instituição —, pode imaginar-se o que se passará quando uma vaga de fundo (e é seguro que ela vai surgir) trouxer de novo as massas trabalhadoras para o primeiro plano da luta política. Nessa altura, a experiência de 74-75, que agora parece enterrada, voltará à memória colectiva dos trabalhadores e será de toda a utilidade. Concretamente: a forma independente como o proletariado tomou a iniciativa da acção política, agindo em defesa dos seus interesses, dando o exemplo à restante massa trabalhadora, rejeitando o espartilho das instituições, praticando a sua própria democracia, ousando atacar os privilégios da propriedade privada e pondo em causa o poder das classes dominantes.
Comentários dos leitores
•afonsomanuelgonçalves 9/2/2016, 20:10
O sistema capitalista encontrou de facto finalmente o seu ponto de saturação, nada poderá aliviar o grande infortúnio que se abateu nas classes trabalhadoras e se estas permanecerem neste tipo de combate desenvolvido apenas pelos seus sindicatos através de greves efémeras e estabelecidas segundo calendários agendados para determinadas datas e horários, os resultados de tudo isso serão nulos e prejudiciais. Isto é um facto comprovado através dos últimos anos mas o regime está de tal modo arreigado a este tipo de luta que até parece que não existem outras formas mais adequadas para se obter outro tipo de resultados. A ideologia sindicalista cristalizou-se de tal modo que não consegue ou não pretende sair deste ciclo paralisante. E no que diz respeito a uma eventual revolta popular, seria talvez mais útil fazer uma séria reflexão sobre o que aconteceu imediatamente a seguir ao 25 de Abril e fazer como Lenine fez em relação ao falhanço da Revolução de 1905, que foi uma análise profunda dos erros cometidos, quer com o campesinato quer com os operários e também obviamente com o partido. Se isso for feito poderá, talvez, haver um salto qualitativo a caminho do triunfo da revolução em Portugal.
•António Alvão 21/2/2016, 18:49
"Em 1905 houve o falhanço da revolução e cometeram-se muitos erros"; na de 1917, até parece que não houve falhanço nem se cometeram erros? Talvez por Lenine ter como grandes colaboradores Trotsky e Estáline???