Leis e salsichas
A Inquisição contra a lei da IVG
Manuel Raposo — 29 Julho 2015
Numa sessão maratona que praticamente culminou a legislatura (a 4 de Outubro haverá eleições), a Assembleia da República aviou no dia 22 de Julho, numas quantas horas, a discussão e votação de dezenas de diplomas, antes de ir para férias.
Poderia pensar-se que, por respeito pelos cidadãos, a Assembleia guardaria para este final de etapa apenas os diplomas de menor importância ou de menor controvérsia. Mas não. Entre a catadupa de leis e alterações de leis guardadas para a última hora figurou uma proposta de modificação da lei da Interrupção Voluntária da Gravidez, aprovada por referendo em 2007.
Avançada por uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos, que alberga os mais reaccionários e os mais inquisitoriais opositores da IVG, a proposta foi acolhida de modo discreto, mas de braços abertos, pelo governo e pela maioria PSD/CDS. E acabou por ser aprovada contra a vontade de toda a oposição.
Os autores do diploma levado a votação optaram por lhe dar um perfil baixo, para facilitar a passagem da alteração legislativa na AR e evitar alarme público. Limaram por isso os ímpetos mais escabrosos do grupo de pressão acobertado pela Iniciativa Legislativa de Cidadãos que levou a lei a plenário.
Para se avaliar o nível e os objectivos de tais “Cidadãos”, saiba-se que uma das medidas que propunham era que a mulher que quisesse abortar fosse obrigada a ver e a assinar a ecografia com o feto! Como se fosse legítimo e fizesse sentido, por exemplo, obrigar um doente de cancro a assinar a imagem do seu próprio tumor antes de se submeter a uma cirurgia, ou um tuberculoso ser confrontado com a imagem dos seus pulmões.
O fim é óbvio: exercer uma coacção psicológica sobre a mulher culpando-a de “matar o filho”, argumento largamente usado aquando do referendo. Vão na mesma linha outras medidas propostas pelos inquisidores, como a de envolver na decisão de abortar ou não abortar o cônjuge da mulher em causa.
O sentido geral das propostas do grupo de pressão é fácil de ver: anular o centro da questão que está na liberdade que a lei da IVG confere à mulher — liberdade essa que consiste em poder escolher se quer ou não ter um filho, e as circunstâncias em que o quer ter, sem sofrer pressões de ninguém.
Adivinha-se que a táctica seguida pelo núcleo duro dos inquisidores, de concerto com a maioria parlamentar PSD/CDS, foi a de torcer gradualmente a lei de modo a desvirtuá-la, em vez provocar um embate frontal — que mobilizaria a opinião pública e confrontaria o referendo de 2007.
Manhosamente, puxaram o debate para uma questão suficientemente escorregadia, e aparentemente secundária, para não poder suscitar grande objecção: a aplicação de taxas moderadores aos actos médicos de IVG, a pretexto de não “beneficiar” quem aborta face aos demais utentes dos serviços de Saúde. Mas, de caminho, introduziram mais umas quantas alterações que atentam contra a liberdade e a livre escolha da mulher.
Por exemplo: o período de reflexão estabelecido na lei (que diz respeito em exclusivo à mulher) passa a ter obrigatoriamente “consultas de aconselhamento psicológico e social”. Ou seja, os conselhos — que por natureza são coisas que só toma quem quer — passam a ser… obrigatórios.
Mais: os médicos objectores de consciência — isto é, os que se opõem à IVG, e que por isso estavam logicamente afastados dos actos médicos relativos à IVG (tanto para salvaguardar a sua consciência como para salvaguardar as mulheres das opiniões deles) — passam a poder participar nas consultas, obviamente apenas para poderem fazer a sua pedagogia junto das mulheres que querem abortar.
Esteve bem o público presente nas galerias da AR que gritou “Vergonha!” quando a maioria aprovou tamanhas aberrações, que a deputada Isabel Moreira (PS) classificou de “terrorismo psicológico sobre a mulher”. Resta esperar que tudo isto seja revertido, como prometeram os deputados Heloísa Apolónia (Verdes) e António Filipe (PCP), logo que a nova Assembleia tome posse.
O chanceler Otto von Bismack, que governou a Alemanha durante 30 anos, e que sabia bem o que era legislar, terá dito qualquer coisa como isto: “Os cidadãos dormem mais descansados se não souberem como são feitas as salsichas e as leis”.
Comentários dos leitores
•afonsomanuelgonçalves 30/7/2015, 10:33
Uma atitude destas tão escabrosa é de considerar na Europa do séc. XXI surpreendente e completamente inesperada, no entanto Portugal tinha que ser excepção no que respeita a encontrar ardis tão mesquinhos e repugnantes para com as hipocrisias do costume ser capaz de encontrar soluções que amesquinhem constantemente os direitos mais elementares dos cidadãos. Foi um pesadelo revoltante aquele dia que se viveu na Assembleia da República.
•leonel clérigo 3/8/2015, 20:09
Gato escondido com rabo de fora
O texto de MR vem “ilustrado” com um “auto-de-fé” no Terreiro do Paço e onde se faz visível o grelhar do “infiel”, a fogo brando, pela Inquisição Católica. Com esta associação, julgo poder-se dizer que, apesar do texto não referenciar concretamente a Igreja nesta recente questão do IVG, MR acaba – e julgo eu muito justamente – por a tornar presente.
1 – Ninguém dúvida da enorme influência que a Igreja de Roma – como “instituição” - tem vindo a ter e desde a origem, no destino da nação portuguesa. E se numa fase inicial da nossa História parece ter Ela representado algum papel positivo, é a partir da morte (ou foi assassinato?...) de D.João II – onde realmente termina a dinastia de Avis e entram em cena os “beatos” dos Braganças pela mão da “eminência parda” do Cardeal de Alpedrinha – que termina o papel progressista da Igreja de Roma no Ocidente e a sua transformação – em Portugal - numa força obscurantista que vem ajudando fortemente na paralisia do país.
2 – Se houve período em que isto foi bem visível, foi no período do meio século de Salazar, um homem saído das fileiras do CADC de Coimbra. E se o 25 de Abril tem ainda muito que contar e só permanece o silêncio de cortar à faca da burguesia capitalista portuguesa, é por esta ser fraca e precisar para sua “salvação” interna do “apoio católico” que vem favorecendo “as setinhas que apontam para o céu”. Por isso Maria de Belém é, sem dúvida, uma excelente candidata Presidencial para o PS.
3 – Voltando ao texto de MR, como se pode tentar “descodificar” este “jogo de sombras” no “ataque à IVG”? A coisa não é fácil mas tudo parece indicar que atravessamos, a vários níveis, tempos conturbados de “contagem de canhotas”. E aí surgem as possíveis “alianças”, os encontros de “propósitos”. A Igreja Católica Portuguesa necessita “clarificar a sua posição”, de que lado está na iniciativa do Sínodo que Franciscus – um homem vindo do 3º Mundo “subdesenvolvido” - promoveu e que pede agora “clarificações” em Outubro. Quanto à nossa “germânica” mas “patriótica” maioria PSD/CDS, precisa ela de continuar no poder pois assim o exige a Austeridade neoliberal da ainda hegemónica “maioria” Merkel/Shaüble. Os propósitos conjugam-se e a “aliança” marcha em frente: os católicos, dizem-nos, têm largo peso nas urnas.
4 – Contudo julgo haver algo um pouco complicado e que merece atenção. No centro da Conferência Episcopal Portuguesa parece haver uma divergência, o que demonstra a permanência das salutares contradições que sempre varreram o mundo e nos faz desconfiar da veracidade da “abstrata” proposição do “A César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. No centro das várias divergências estão os dois pontos quentes da “comunhão referente aos divorciados” (o acesso aos sacramentos por parte dos "divorciados e recasados", uma questão que julgo “sensível” no PPD por homenagem a Sá Carneiro) e o “matrimónio entre homossexuais”. Dum lado, os que “apoiam” o nosso Cardeal Clemente e do outro os apoiantes do Bispo de Leiria-Fátima António Marto ou seja, dum lado a designada “coerência da doutrina” que tece armas contra os “neopagãos”, os que trazem de volta a “heresia ariana do quarto século” no dizer do bispo ucraniano Athanasius Schneider. Para quem irá pender a balança não sei e tenho clara consciência que avançar um prognóstico, é “areia de mais para a minha camioneta”.