O PS de Costa — renovar a ilusão
Manuel Raposo — 1 Outubro 2014
Não faltaram frases grandiloquentes para enaltecer a vitória de António Costa na arrastada disputa interna travada no PS. “Nova esperança”, “o princípio do fim deste governo”, “o PS de novo alinhado com o povo” são algumas das tiradas que tentam projectar o novo líder e fazer crer que depende dele virar o país do avesso.
Todo este discurso não pretende mais do que renovar nos eleitores a ilusão de que o PS é a alternativa à parelha Coelho-Portas e à austeridade. É, por isso mesmo, um discurso de curta duração e de curto alcance.
Antes de mais, importa lembrar este facto simples de que a disputa interna no PS e a ascensão de Costa contra Seguro se deveu ao descrédito geral que atingiu o PS. Ninguém efectivamente já acredita, pelo que foi visto nos últimos três anos, que o PS seja muito diferente da dupla PSD-CDS. E os que têm memória lembram-se perfeitamente dos PEC de Sócrates que abriram caminho à austeridade, e depois à troika e ao governo de Passos Coelho.
Conhecido este lastro, uma parte do PS percebeu que, ao ritmo de Seguro, o partido se arriscava a perder as próximas eleições ou a ganhá-las por pouco — e a ficar em qualquer dos casos em maus lençóis: ou afundar-se ainda mais perante a opinião pública e tornar-se irrelevante, ou arcar com um governo frágil, sem vontade própria e final a prazo.
Foi contra estes riscos que a onda oposicionista de Costa se levantou, revestindo-se, claro está, com o discurso do interesse nacional e popular.
Esta motivação primeira da disputa interna permite perceber que o propósito da facção Costa é, acima de tudo, o de reabilitar o PS como partido de poder e de governo — e nesse sentido estrito constituir alternativa ao PSD. Quanto à política, logo se verá…
Sintomático disto mesmo é o facto, destacado com espanto por muitos ingénuos que esperavam por novos programas de acção, de as propostas políticas dignas desse nome não terem aparecido, nem contra Seguro, nem contra o governo.
Está pois em curso a renovação de uma ilusão: a de que o PS é a alternativa a Passos Coelho e à austeridade. Ou, dito de forma mais tradicional: a de que o PS é “a alternativa à direita”.
A questão que se põe à esquerda anticapitalista é a de saber porque se renova ciclicamente esta ilusão, que tem tanta idade como a dos governos constitucionais.
A resposta, quanto a nós é esta: a acção reivindicativa e política dos trabalhadores tem vivido, há quase 40 anos, na dependência estratégica do PS — na esperança sempre baldada de o fazer pender para a esquerda e de, com esse expediente de baixo custo, forjar “uma maioria” que permitisse dar curso a uma política popular, à imagem do 25 de Abril. Esquece quem assim pensa que, naquela altura, era o movimento dos trabalhadores que tinha a iniciativa, que ousava agir por si próprio contra o domínio do capital e contra o sistema político, coagindo o patronato e os governos a abrir mão de concessões. Foi isso que, por breve período, fez do PS “esquerda”.
Aquela dependência continuará enquanto o PS não for considerado como aquilo que efectivamente é: um partido do patronato, do capital — e portanto da direita — como a prática política de décadas tem mostrado.
A febre de alianças que atinge regularmente todos os partidos e partidecos da esquerda demonstra isto mesmo, e ajuda a renovar (por pouco tempo, é certo) essa imagem “de esquerda”, que agora inevitavelmente recai sobre António Costa.
A esquerda tem de se dispor a essa coisa elementar que é erguer um movimento anticapitalista, com base nos trabalhadores, politicamente independente das forças do poder. É segundo este prisma que os Coelhos ou os Portas, mas também os Costas, podem ser justamente avaliados.
Comentários dos leitores
•António Alvão 5/10/2014, 12:42
Gostaria que vocês comentassem os acontecimentos que se estão a passar em Hong Kong, obrigado.
•leonel clérigo 16/10/2014, 10:48
A síntese certeira de Manuel Raposo sobre a natureza do Partido Socialista (PS) – “um partido do patronato, do Capital…” – merecia, em minha modesta opinião, ser reforçada com uma vista de olhos sobre a sua “história” ou seja, sobre a sua “origem” e “desenvolvimentos” posteriores. Ao se percorrer esta história, julgo que surge claro como o PS se encontra bem amarrado ao princípio oportunista bernsteiniano e que lhe define o “carácter”: “O movimento é tudo”, um modo “hábil” de mudar “gradualmente” de princípios ao sabor das circunstâncias atando eternamente o Socialismo aos “movimentos” do Capital. E bastou a este inscrever na "ordem do dia" uma promissora mas “mal avaliada queda do muro” – escondida por detrás da “acta de Helsínquia” de 75 – para o PS iniciar um artístico “strip-tease”: uma a uma, as “peças” da “roupagem socialista” foram sendo jogadas fora e, a “transição para o socialismo”, terminou em cima do piano onde A. Touraine tocava o “Socialismo do futuro” ao ritmo da globalização neoliberal da Wall Street. Tem então toda a justeza a pergunta: que faz lá o “Socialismo” na designação de tal Partido? Será que o próximo Congresso irá terminar com esse “Não dar a bota com a perdigota”?
Nota: para se avaliar a natureza do PS – como de qualquer outro Partido – julgo ser forçoso ter presentes duas questões essenciais: uma, diz respeito à clareza com que o Partido identifica os “problemas” com que a “sua” sociedade se debate e como procura resolvê-los (ou não); o outro, diz respeito ao seu alinhamento na “luta de classes” ou seja, que classe e interesses de classe defende e quem considera “seus amigos e seus inimigos” (política de alianças interna e externa). Os documentos programáticos e outros emanados por um Partido – para o PS basta a “Declaração de Princípios de 73”, a “Política Económica de Transição”, “O Projecto de Constituição” (com as intervenções na Constituinte) e a “Finisterra” nº1, “fundadora” do novo “Socialismo do Futuro” – são então peças essenciais que expõem as contradições com que ele se debate e a capacidade ou incapacidade de as solucionar. E é na comparação destes ”propósitos” com a sua “Prática Política”, que salta à luz do dia a sua verdadeira natureza bastas vezes oculta no “barulho das luzes” do palavreado. Em meu entender, o PS – como todos os Partidos – debate-se, no Portugal de hoje, com uma contradição principal quase sempre escondida e a saber: o que caracteriza uma “sociedade moderna” - que os portugueses há muito perseguem sem êxito - é a concretização da Revolução Industrial mas, Portugal ainda não a fez e por impossibilidade da “sua” burguesia capitalista. Para alguns Partidos burgueses – e até personalidades de “top” e do governo – esta questão central já se banalizou e até saiu à rua. Daqui surge a decisiva questão há muito “escondida”: se a classe burguesa capitalista "lusa" se tornou impossibilitada historicamente – pelas suas “incapacidades históricas” e dependências do imperialismo - de concretizar esta tarefa, que CLASSE SOCIAL a poderá fazer? Esta, uma boa adivinha e dela irá depender a morte ou a sobrevivência de Portugal.