EUA e UE levam Ucrânia à beira da guerra civil

Manuel Raposo — 7 Março 2014

mccain_ucraniaQuando artigo seguinte foi escrito (e publicado no MV 40, edição papel), em início de Janeiro, as manifestações na Ucrânia esmoreciam e parecia que a calma estava regressar ao país. Enganámo-nos. A disposição da União Europeia e dos EUA em arrastar a Ucrânia para a sua órbita levou-os a apoiar por todos os meios os protestos de rua e a incentivar, inclusive, a pior escumalha de entre os grupos fascistas ucranianos, no sentido de debilitar o poder do presidente Yanukovich. Conseguiram-no e não recuaram mesmo diante do risco de levar o país à beira da guerra civil; ou até de um confronto com a Rússia, que defende os seus interesses na zona. É neste sentido que têm de ser entendidas as declarações dos dirigentes ocidentais, entre eles o sinistro Rasmussen, secretário-geral da NATO.
A incerteza ainda paira no ar, com as populações russas e russófonas do leste do país a recusarem o novo poder instalado em Kiev e a pedirem protecção à Rússia, que entretanto movimentou tropas na Crimeia — onde está estacionada a sua frota do Mar Negro.
Apesar da subavaliação dos propósitos das forças imperialistas ocidentais e das evoluções mais recentes, o quadro em que os acontecimentos se desenrolam permanece actual. Por isso publicamos o artigo tal como foi redigido em Janeiro — com ressalva do título, a que tem de se acrescentar um “não”.

Ucrânia: Rússia (não) trava avanço da UE para leste

Em finais de Novembro, a Ucrânia recusou assinar um acordo de associação com a União Europeia, que vinha a ser preparado praticamente em segredo. O volte-face e a promessa da Rússia de apoiar a debilitada economia ucraniana desencadearam um a onda de acusações dos dirigentes europeus à Rússia e deu lugar a protestos de rua em Kiev, a capital da Ucrânia. Quando, em meados de Dezembro, dando curso às promessas, o presidente russo Putin acertou com o presidente ucraniano Yanukovich uma baixa de 30% nos preços do gás russo e um apoio financeiro de 11 mil milhões de euros, o ministro alemão dos Negócios Estrangeiros considerou “revoltante” o “aproveitamento” feito pela Rússia das condições económicas da Ucrânia. Resta saber qual o “aproveitamento” que a UE se preparava para fazer por seu lado.

Sobre um cenário de concorrência

O quadro em que tudo se desenrolou é instrutivo.
A UE, como se sabe, procura colocar na sua órbita os países do leste europeu. Além dos que já a integram, propõe-se estabelecer formas de associação com outros estados, nomeadamente acordos de livre comércio. É esse o propósito da Parceria Oriental, para a qual procura cativar países que pertenceram à ex-URSS. Era na cimeira dessa Parceria a realizar Vílnius, Lituânia (em 28-29 de Novembro), que estava prevista a falhada assinatura do acordo com a Ucrânia.
A UE visa com isto alargar os seus mercados a troco de uma suposta igualdade de oportunidades para todas as partes. Sabe-se porém que a capacidade económica muito superior dos principais estados da UE esmaga a concorrência e acaba por arruinar a produção dos associados mais fracos.
Para lá dos negócios, este alargamento a leste (visando a Geórgia, a Moldávia, a Arménia, a Bielorrússia, o Azerbeijão e a Ucrânia) tem o propósito de retirar aliados e mercados à economia russa, ao mesmo tempo que cria condições para levar a presença da NATO até às fronteiras do gigante euro-asiático.

Por seu lado, a Rússia procura estabelecer, no âmbito da Comunidade de Estados Independentes (formada pela repúblicas ex-soviéticas), um mercado livre — incluindo, nomeadamente, a Bielorrússia, o Cazaquistão, o Tadjiquistão, a Ucrânia e a Arménia. Como é evidente, esta ambição colide com os planos da UE, e significa da parte da Rússia a tentativa de sacudir o cerco, tanto económico como militar, que lhe é movido por europeus e norte-americanos.

A disputa não é de agora e não se tem saldado por grandes ganhos para a UE. Com efeito, só a Geórgia e a Moldávia aceitaram os convites para integrarem a Parceria Oriental, o que põe em causa os objectivos europeus. Na verdade, a Ucrânia era a aposta maior da UE — pelo PIB muito superior ao dos países vizinhos, pela extensão territorial e pela sua costa no Mar Negro, onde está estacionada a frota russa do Mediterrâneo.

O episódio do acordo com a Ucrânia, portanto, faz parte de uma disputa séria entre potências que se digladiam em áreas geográficas de fronteira, tanto por ganhos económicos como por vantagens estratégicas.

Favas contadas, pensava a UE

Dito isto, as condições concretas em que tudo se desenrolou também são instrutivas.
As dificuldades económicas da Ucrânia são grandes e correspondem a um filme conhecido: recessão, risco de insolvência, agências de rating a degradarem a classificação do país, crédito concedido pelo FMI em 2010 ainda por pagar.

Isto tornou a Ucrânia vulnerável e uma presa fácil — pelo menos assim o julgavam os dirigentes europeus e norte-americanos. A UE propôs uma ajuda (que Yanukovich considerou humilhante) de 610 milhões de euros para “modernização” do país, quando as necessidades imediatas serão da ordem dos 20 mil milhões. Mais: o acordo com a UE implicava a aceitação de novas condições impostas pelo FMI, nomeadamente a subida do preço do gás para os consumidores particulares, o congelamento dos salários, das pensões, dos benefícios sociais e das bolsas de estudo e a desvalorização da moeda ucraniana. Isto é, medidas de esmagamento das condições de vida da população e de limitação da soberania da Ucrânia.

E mais um pormenor ainda: como condição do acordo, a UE exigia a libertação de Yulia Tymoshenko, ex-primeira-ministra, a cumprir pena de prisão por abuso de poder. Neste particular, não escapa a ninguém a ambição da UE de assegurar um interlocutor interno para futuras disputas políticas.

A aposta russa

Sabendo da importância de manter a Ucrânia do seu lado, a Rússia apostou forte. Sem impor nenhuma condição daquele tipo, decidiu comprar 11 mil milhões de euros em obrigações do Estado ucraniano, reduziu em um terço o preço do gás que fornece à Ucrânia (equivalente a uma poupança anual de 2 a 3 mil milhões de euros), perdoou parte da dívida e acertou a eliminação de taxas de importação sobre alguns bens.
Logo que a primeira fatia do apoio foi transferida para o Banco Nacional da Ucrânia, a cotação do país subiu nos mercados internacionais.

No imediato, portanto, a Rússia ganhou a parada e pode dizer-se que os ucranianos evitaram os males maiores da submissão às condições da UE e do FMI, que bem conhecemos aqui pelo sul da Europa. Talvez por isso, os protestos que se levantaram em Kiev em final de Novembro começaram a esmorecer depois do acordo com a Rússia. Como comentava um político da oposição ucraniana, “é difícil argumentar contra a baixa dos preços do gás”.

Em face do desenlace, não admira que o ministro alemão dos Estrangeiros se sentisse “revoltado”, que Angela Merkel se limitasse a “lamentar” a decisão da Ucrânia e a informar que a “proposta (da UE) continua sobre a mesa” e que os negociadores da UE tivessem para já de fechar o dossiê Ucrânia e esperar melhores dias para a Parceria Oriental.
No caso, só têm de se queixar de si próprios por quererem comprar galinha gorda por pouco dinheiro — não contando nem com o interesse da Rússia nem com a margem de escolha da Ucrânia.

Maus apoios

Os protestos populares em Kiev revelam tanto o receio de que a Ucrânia volte à órbita “soviética”, como a ilusão ingénua acerca do Eldorado da UE. Mas as figuras de proa que apareceram a estimular os protestos, essas evidenciam apenas a influência directa das ambições da UE e dos EUA no conflito.
Uma delas, Yulia Tymoshenko, cumpre uma pena de prisão de 7 anos por abuso de poder, justamente por ter firmado com a Rússia, quando era primeira-ministra, um contrato de abastecimento de gás ruinoso para a Ucrânia. É ela que clama agora contra o presente acordo com a Rússia em nome da “independência” da Ucrânia…
Outra, foi o enérgico senador norte-americano John McCain, que se deslocou a Kiev para espevitar o “sentido patriótico” dos ucranianos… e ameaçar com sanções dos EUA se o acordo com a UE não fosse por diante.
Outra ainda, foi o ex-presidente da Geórgia, Saakashvili, um simples agente norte-americano que submeteu o seu país à NATO e desencadeou em 2008 uma guerra com a república da Ossétia.
Uns degraus abaixo, seria injusto esquecer o deputado do PSD Duarte Marques que foi a Kiev exortar os manifestantes (já em debandada) e levar, em nome da juventude do Partido Popular Europeu, mil bandeirinhas da UE para animar as hostes.

PS: A estes adeptos da “democratização” da Ucrânia — que passou, lembremos, pelo derrube de um presidente democraticamente eleito e pelo apoio a grupos nazis, que teve como primeiro acto a exclusão do russo como segunda língua do país — há que juntar agora a figura de Ana Gomes, deputada europeia do PS, que faz gala em brilhar na “ala esquerda” do Partido Socialista. Com esquerdas destas não precisamos de direita.


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