A degradação do Serviço Nacional de Saúde
Os privados agradecem, os utentes sofrem
Pedro Goulart — 9 Fevereiro 2014
As chamadas reformas do Serviço Nacional de Saúde (SNS) ocorridas nos últimos anos, muitas vezes a pretexto do combate a ineficiências e desperdícios (que, a par da corrupção, também existiam no sector) aumentaram as dificuldades das classes trabalhadoras e do povo no acesso aos cuidados de saúde. Os sucessivos cortes (a torto e a direito) no sector já ultrapassaram em muito as alegadas ineficiências e desperdícios, tendo conduzido ao afastamento de numerosos profissionais altamente qualificados (médicos, enfermeiros e técnicos de diagnóstico), produzido vários estrangulamentos e causado sérios problemas ao atempado e adequado tratamento dos doentes. Longas esperas nas urgências, para consultas de especialidade e para determinadas intervenções cirúrgicas têm sido as consequências mais penosas de tais políticas. E o caso recente dos trabalhadores da Linha de Saúde 24 (substituindo enfermeiros experientes por outros mais baratos e sem conhecimentos adequados) surge como mais um acto que vai na linha da crescente degradação dos cuidados de saúde prestados aos portugueses.
As várias medidas adoptadas no campo da Saúde pelos últimos governos, incluídos os aumentos das taxas moderadoras e o racionamento das consultas médicas, dos medicamentos e dos meios complementares de diagnóstico, têm empurrado muitos doentes para o Privado (os que têm algum dinheiro) e atirado, não raramente, para sofrimentos desnecessários e até para a morte numerosos utentes do SNS.
Dois casos graves
Um caso que veio alertar ainda mais a opinião pública para o grau de degradação já hoje atingido pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS) foi o de uma utente, com cerca de 60 anos, que já habituada a fazer o rastreio ao cancro colo-rectal, teve uma análise positiva, o que levou o médico de família a enviá-la a uma consulta de gastrenterologia no Hospital Fernando Fonseca (Amadora-Sintra) para fazer uma colonoscopia. Mas que teve de esperar um ano pela consulta, a que se seguiu outro ano para fazer a referida colonoscopia. “Ao fim de dois anos, tinha cancro no intestino, grande e inoperável. A utente está agora a fazer quimioterapia para o reduzir, a fim de ver se pode ser operada”, diz o médico. A unidade não nega o tempo de espera e afirma que tem de triar os doentes mesmo quando a análise é positiva, por ter falta de recursos. Sendo este um caso limite, certamente não é único, pois situa-se num contexto condenável: só entre 2011 e 2012 o número de doentes cancerosos operados com uma demora superior à desejável subiu 17,5%. Cinicamente, em declarações à Lusa, fonte do Ministério da Saúde disse ser esta uma situação “intolerável”, que “lamenta profundamente”.
Outro caso também recente: o ministro Paulo Macedo, durante uma audição na comissão parlamentar de Saúde, quando confrontado pelo Bloco de Esquerda com uma ocorrência no Hospital Amadora-Sintra, em que uma mulher de 67 anos morreu de enfarte após ter esperado mais de seis horas para ser atendida, afirmou que este foi um caso isolado. Mas, apesar desta afirmação, o ministro reconheceu que é preciso investigar o caso.
As causas do mal
Num debate realizado em Coimbra e subordinado ao tema “Ética da sustentabilidade do sistema de saúde – Ética na prestação de cuidados de saúde, ética no circuito do medicamento”, o bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva, recusou o racionamento no SNS, que promove “uma saúde para ricos e outra para pobres”, afirmando que “o racionamento só afecta os mais desfavorecidos” da sociedade. Para o bastonário, o racionamento de medicamentos, materiais diversos usados na saúde e meios complementares de diagnóstico traduz “uma atitude que discrimina” os utentes deste Serviço.
Reportando-nos, ainda, ao Hospital Amadora-Sintra, lembramos que numa carta de demissão de 31 de Dezembro de 2013, e referindo-se a uma situação que se arrasta desde 2012, a direcção do Serviço de Urgências dizia fazê-lo (o pedido de demissão) “por entender que as actuais condições de trabalho põem em risco a qualidade mínima no atendimento e a vida dos doentes”. Os médicos denunciavam que o serviço de urgência do hospital nunca teve dimensão adequada, situação agravada pela falta de resposta de cuidados primários na região. E que a dificuldade de acesso aos médicos de família faz com que chegue ao hospital “um elevado número de pessoas com patologias inadequadamente abordadas e tardiamente diagnosticadas”. Acrescentavam, também, que à falta de espaço se juntava a redução das equipas, esclarecendo que em certos dias só há quatro médicos no balcão das Urgências a partir das 20h e que muitos deles não têm formação diferenciada em urgência.
Os casos mortais acima referidos, respeitantes a utentes do SNS, as declarações do bastonário da Ordem dos Médicos e a carta de demissão da Direcção do Serviço de Urgências do Hospital Amadora-Sintra, correspondem apenas à ponta de um iceberg de degradação em que o SNS está a ser transformado pela política do governo. Este é, com efeito, o resultado de uma política de cortes brutais no SNS e favorecedora da entrega de parte significativa dos cuidados de saúde e dos respectivos lucros ao sector privado (companhias de seguros, hospitais e clínicas). E não adianta o ministro Paulo Macedo tentar enganar-nos, esgrimindo alguns números, lamentando estas situações ou criando mais umas quantas comissões de inquérito, pois tal não resolve os reais problemas de fundo que hoje se colocam quanto aos necessários cuidados de saúde dos portugueses.
É preciso parar esta política criminosa do capital!