Traços da guerra diplomática Lisboa-Luanda

Manuel Raposo — 5 Novembro 2013

lisboaluandaA burguesia que governa Angola é, em essência, igual à portuguesa: exploradora e corrupta. Com a diferença de ter menos tempo de prática.
Acontece, porém, que a burguesia angolana se libertou da tutela colonial da burguesia portuguesa e agora está por cima à custa do petróleo, dos diamantes, dos imensos recursos do país e do crescimento económico impetuoso dos últimos anos — conseguido, aliás, com o fim de uma longa guerra civil grandemente promovida pela burguesia portuguesa. Em contrapartida, a burguesia portuguesa está por baixo. Penhorada ao capital europeu e com os negócios nacionais estagnados, precisa de investir em Angola, precisa dos investimentos angolanos em Portugal, precisa que os novos-ricos angolanos venham fazer compras de luxo a Lisboa. É esta a moldura dos negócios entre Portugal e Angola.

Mas a burguesia portuguesa (que tem no sangue 500 anos de colonialismo) não suporta que “pretos” e ex-“terroristas” sejam hoje capitalistas e ricos, e que eles lhe ditem condições. Preferia que os negócios corressem à moda antiga, com exclusivo, com salamaleques, sem ter de pagar luvas e subornos, sem ter de se sujeitar às decisões das autoridades angolanas.

As investigações do Ministério Público português sobre eventuais actos de corrupção de figuras do Estado angolano podem ter perfeita pertinência. Mas as fugas de informação que atiraram para a praça pública os nomes dos investigados — seguindo uma prática habitual da luta entre facções da burguesia portuguesa — só podem ser vistas como uma jogada para tentar queimar dirigentes angolanos e coagir o poder em Luanda.

Isso fica patente no coro da comunicação social portuguesa contra a corrupção e a violação das liberdades individuais por parte do regime angolano, coro tanto mais sonoro quanto a corrupção e a violação das liberdades individuais por parte da burguesia portuguesa são mantidas em adequada surdina e sempre tratadas como “excepções”.

Ficou patente também na desavergonhada posição do clã Soares pela voz de João Soares e Alfredo Barroso (tributo ao amigo Savimbi?), que chegaram a comparar o regime de Luanda ao de Salazar (!) — a ponto de serem figuras da direita, como o embaixador Martins da Cruz, a mostrar o disparate da comparação e a desmenti-los com factos irrefutáveis.

Ficou ainda patente na desgraçada posição do Bloco de Esquerda na interpelação parlamentar ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Machete, em que a indignada deputada Helena Pinto se fez paladina da “ética”, da “honra e prestígio do nosso país”, da “credibilidade do Estado de direito”, contra a “subserviência inadmissível” do pedido de desculpas de Machete, coisa que “nunca devia ter feito” sobretudo “aos microfones de um estado estrangeiro”. Podia ser conseguida mais completa omissão e absolvição das ambições da burguesia portuguesa, escondidas atrás do folhetim das investigações do Ministério Público? (*)

Quando o presidente angolano declarou há dias que a “parceria estratégica” com Portugal não era prioridade de Angola, e quando o ministro dos Negócios Estrangeiros angolano confirmou que as atenções de Angola se viram sobretudo para a África do Sul, a China ou o Brasil — estavam evidentemente a contra-atacar e a tentar anular o escândalo que pode resultar das investigações. Mas não só. Estavam também a lembrar aquilo que é óbvio: que a burguesia angolana tem hoje meios e um campo de manobra muito mais vasto que a burguesia portuguesa e que isso lhe dá capacidade para se virar para outros parceiros sem ter de prestar vassalagem ao capital português.

É isto que permite entender o pedido de desculpas a Luanda do apatetado Machete; ou as diligências “entre gabinetes” promovidas por Cavaco Silva tentando “normalizar as relações”; ou as declarações de Ricardo Salgado, presidente do BES, de que é preciso “fazer tudo para que a relação de familiaridade com Angola seja recuperada”. A razão desse “fazer tudo” é simples, ainda segundo Ricardo Salgado: “Isso é crítico para o País”, ou seja, para o capital português.

Os negócios de parte a parte (é essa a única “familiaridade” em causa) vão certamente prosseguir, movidos exclusivamente pelos interesses respectivos dos capitais que estão em jogo. Mas não segundo as regras que a burguesia portuguesa gostaria de ditar. É isso que dói aos briosos patriotas que levantam a voz em defesa da “honra” do país.

(*) Ao que se sabe, figuras portuguesas são igualmente alvo das investigações do Ministério Público, mas a “fuga de informações” terá visado, cirurgicamente, os angolanos. Soube-se também, recentemente, que um dos processos, contra o Procurador-geral de Angola, aberto em Dezembro de 2011, foi arquivado em Julho de 2013 — mas a comunicação do arquivamento foi feita apenas em Outubro. Como ironizou o advogado do visado, a Justiça portuguesa não consegue guardar segredo de justiça, mas consegue guardar segredo de arquivamento.


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