A chispa

António Louçã — 1 Julho 2013

A chispa que deita fogo à pradaria pode surgir quando menos se espera e pelos motivos mais improváveis. Na Turquia foi o centro comercial que o Governo queria instalar na praça mais emblemática de Istambul. No Brasil foi o aumento de vinte cêntimos no bilhete de ónibus. Mas, nesses dois países que observadores superficiais têm considerado casos de sucesso económico, o que estava em causa era muito mais do que isso. Havia em ambos uma pradaria pronta a incendiar-se à primeira chispa que a atingisse.

O que parecia começar como uma discussão de ambientalistas e patrimonialistas, a defenderem Istambul contra o negocismo dum Governo ideologicamente beato, rapidamente se tornou um libelo contra o conjunto da política autoritária de Erdogan e contra a sua campanha para islamizar o Estado. A força dos manifestantes de Taksim tornou-se um factor político de primeira linha, causando pela primeira vez uma fractura pública entre o primeiro-ministro Erdogan, defensor da solução “musculada”, e o presidente Abdullah Gül, que procurava uma abordagem mais realista, de desmobilizar os manifestantes através do diálogo.

Do outro lado do Atlântico, o que parecia começar como uma luta urbana, contra o aumento de preço dos transportes, logo passou a questionar a política de investimento do Governo pêtista. A mesma mão que degrada o serviço público de transportes, degrada os da educação e da saúde. E essa é também a mesma que gasta à tripa-forra no futebol. As pessoas que se manifestam contra a duplicidade do Governo Dilma captaram o fundo do problema: elas exigem escolas, hospitais, transportes de “padrão FIFA”, pelo menos com igual qualidade e igualmente acarinhados pelo investimento público.

Não se sabe ainda se na Turquia irá prevalecer a fórmula Erdogan ou a fórmula Gül, mas sabe-se que no Brasil Dilma já está a perceber a necessidade de recuar em toda a linha. Em Portugal não vivemos ainda um confronto tão generalizado como nesses dois países, mas a estrondosa derrota que o Governo sofreu perante a greve dos docentes aí está para nos lembrar que a muralha troikista não é inquebrável. E, na pradaria sedenta e ressequida deste país, qualquer chispa pode agora causar um incêndio de grandes proporções.


Comentários dos leitores

FP25Abril 16/11/2013, 16:14

Os Portugueses enquanto não sangrarem mesmo pelo nariz não saem da cepa torta.
Enquanto der para um cafezinho, vêr uns futebois e uma sopinha, viva Jesus, só se atinge o reino dos Céus com sofrimento, dizem os padrecos...
Está no sangue do povo a passividade herdada do Estado Novo, veja-se a juventude que aparece nas manifes, quase nenhuma, só se vêem reformados cheios de reumático, os jovens vão snifando uns haxes e esquecem tudo, comem em casa dos pais e dos avós e a coisa vai dando.
Quando os pais e avós morrerem, aí sim poderemos ter uma revolta nas ruas, lá para o ano de 2029... Aí sem o controlo dos Sindicatos poderá virar Chicago, mas já cá não estamos para vêr...


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