O mais recente acto do ‘conflito coreano’

Manuel Raposo — 22 Abril 2013

A dramatização acerca da situação na península coreana que desde há meses vem sendo feita pelos meios de propaganda ocidentais baixou de tom nos últimos dias. As intervenções diplomáticas da Rússia e da China apelando à moderação e uma declaração dos responsáveis norte-americanos e sul-coreanos de que pretendem encontrar uma solução negociada fizeram baixar a fervura do conflito. Entretanto, a opinião pública ocidental foi bombardeada de modo concertado com a ideia de que foi a Coreia do Norte (República Popular Democrática da Coreia) que iniciou a “provocação” e a escalada militar e que os 25 milhões de norte-coreanos são governados por um jovem louco que se quer afirmar como líder. Mas esta montagem não resiste a uma observação atenta dos factos recentes e passados.

O primeiro facto a lembrar é que na guerra da Coreia, travada entre 1950 e 1953, terão morrido de 2 a 3 milhões de coreanos e que a Coreia do Norte foi praticamente arrasada pelos bombardeamentos norte-americanos. O comandante das forças dos EUA, general MacArthur, defendeu junto do presidente Truman o uso de armas nucleares não só contra a Coreia do Norte como contra a República Popular da China, recém-formada em 1949. Documentos secretos desclassificados e divulgados há poucos anos confirmaram ainda o uso de armas químicas e biológicas pelos EUA. Este pano de fundo permanece na memória dos coreanos que, aliás, continuam formalmente em guerra uma vez que o armistício de 1953 nunca foi completado com um tratado de paz.

Desde então, os EUA fizeram da Coreia do Sul uma das suas principais bases militares na Ásia, onde estão instalados milhares de soldados norte-americanos. Não propriamente para conter supostas ameaças vindas da RPDC, mas sobretudo para dominar militarmente o Pacífico e assim manter a China e a URSS (e depois a Rússia) dentro de um anel de ferro.

Mais recentemente, depois da morte de Kim Il-sung, Bill Clinton, juntamente com os governos japonês e sul-coreano, estabeleceram em 1994 com o sucessor Kim Jong-il um acordo de cooperação em que se comprometiam a fornecer à Coreia do Norte bens alimentares e petróleo, bem como a apoiar a instalação de centrais nucleares para produção de energia a troco de a Coreia do Norte desistir de produzir armas atómicas.
Os compromissos ocidentais foram sendo protelados, na esperança de que o regime sucumbisse, na esteira da URSS e da Europa de Leste. Entretanto, os EUA continuavam as acções militares na Coreia do Sul e reforçavam mesmo a sua presença tanto na península como no Japão e nas bases do Pacífico.

Em 2002, Bush inclui o regime norte-coreano no “Eixo do mal”, juntamente com o Iraque e o Irão. Na mesma altura, a doutrina militar dos EUA assume a ideia do ataque “preventivo” e defende o uso “em primeiro lugar” de armas nucleares. Não se podia ser mais claro. Diante disto, o acordo de 1994, se já estava comprometido, perdeu todo o sentido e foi declarado morto em 2003. A Coreia do Norte anuncia então a intenção de iniciar o seu programa de armas nucleares.

Ainda em 2003, nova tentativa de acordo é posta em marcha, agora com a participação de seis intervenientes: China, Rússia, Japão, EUA e as duas Coreias. Percebe-se que a entrada da China e da Rússia neste grupo não se destinava apenas a aconselhar a Coreia do Norte, mas a defenderem-se elas mesmas das ameaças norte-americanas conduzidas a pretexto do conflito coreano.
Dois anos depois, a Coreia do Norte suspende o seu programa nuclear, novamente a troco de ajuda, à semelhança do acordo de 1994. Mas nem por isso os termos deste novo acordo são cumpridos. O propósito dos EUA mantém-se: ou fazer vergar a RPDC, ou manter em aberto o conflito.

Já sob a administração Obama, prosseguem as medidas de reforço militar norte-americano no Pacífico, e particularmente no território da Coreia do Sul. Nessa linha, nos primeiros meses de 2013 os EUA promoveram grandes manobras militares, numa demonstração de força em que foram, inclusive, simulados ataques ao território norte-coreano com aviões aptos a transportar armas atómicas.

Enganada pelas promessas não cumpridas de Clinton, ameaçada por Bush, a RPDC vê-se agora confrontada com a escalada da era Obama. É neste quadro que procura retomar o seu programa nuclear, anunciado num plenário do Partido dos Trabalhadores realizado em Março. Mas enquanto a RPDC tenta com isso encontrar um meio de dissuasão que contrabalance as ameaças de que é alvo, da parte dos EUA as ameaças não são meramente dissuasivas.

Não escapa a ninguém a desproporção de meios em confronto, e não é a resposta exaltada dos dirigentes norte-coreanos que esconde o facto de serem os EUA o verdadeiro perigo para a paz na região. Na verdade, a pretexto de mais esta “crise”, os EUA têm reforçado o seu dispositivo militar — chegando ao ponto de instalar armas anti-mísseis no centro de Tóquio!
O resultado final de toda esta manobra é o reforço da presença militar dos EUA no Pacífico. E quanto a isso, hoje como ontem, o alvo principal não é a Coreia do Norte — mas a China e a Rússia, as potências que verdadeiramente assustam os imperialistas norte-americanos.


Comentários dos leitores

Augusto Pacheco 27/4/2013, 14:02

Nunca esperei ver o Manuel Raposo a defender o Regime DITATORIAL e ANTI-COMUNISTA que vigora na Coreia do Norte.
Uma coisa é o direito aos povos a defenderem-se das agressões externas, outra bem diferente é tentar dar o aval a um regime de extrema-direita reaccionário, despótico, com uma sucessão de estilo monárquico, que nada tem a ver com qualquer especie de regime socialista .
FRANCAMENTE....

mraposo 7/5/2013, 22:54

Gostava que o Augusto Pacheco explicasse onde é que, no meu texto, se faz a defesa e se dá aval ao regime Norte-coreano, enquanto regime político e sistema social.
E, já agora, gostava que explicasse também que posição tem acerca do conflito em causa - essa é que é a questão tratada no meu texto.
Talvez assim se possa ter uma discussão séria acerca do assunto.
É que o "direito dos povos a defenderem-se de agressões externas", se for um princípio e não uma frase para pendurar na lapela, obriga quem o defende a tomar posições concretas sobre os conflitos concretos quando eles surgem.


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