O país num caldo de crise política

Manuel Raposo — 31 Março 2013

Tudo se disse a propósito do regresso de José Sócrates à ribalta, agora como comentador político: que vinha disputar a liderança do PS, atacar o governo, vingar-se do presidente da República, desforrar-se dos críticos, candidatar-se a novos voos na política nacional, e o mais que a imaginação pode produzir. Tudo isto é ou pode ser verdade — mas que factor permitiu que esta nova aventura de José Sócrates se transformasse num vendaval político? A meu ver, o beco sem saída em que se encontra a burguesia portuguesa (e com ela todo o regime), sem capacidade de fazer frente à crise económica, confrontada com crescentes protestos populares e por isso mesmo progressivamente afundada numa crise política.

Um governo encurralado

Antes ainda do regresso de Sócrates, os sinais de barafunda no poder vieram ao de cima de modo evidente. Primeiro, com o desastre (longamente anunciado, de resto) da situação económica, confirmado pela sétima avaliação da troika. Depois, com as inevitáveis decorrências políticas, a saber: o simulacro de demarcação por parte do PS anunciando uma moção de censura ao governo (na prática um tiro de pólvora seca, mas isso é quanto o PS pode fazer, quando empurrado pelas circunstâncias); e a pressão vinda de vários sectores das classes dominantes para uma remodelação governamental (cinicamente secundada pelo CDS) na tentativa desesperada de adiar o desconchavo da equipa de Passos Coelho e evitar a incerteza sobre quem irá tomar as rédeas deste carro desgovernado.

Some-se a possibilidade de o Tribunal Constitucional chumbar alguns dos artigos do Orçamento do Estado, com implicações financeiras de monta para as contas do governo, e percebe-se o caldo em que a situação interna do país está.

E se se juntarem ainda os sinais de catástrofe vindos de Chipre, com a prepotência inaudita das medidas tomadas pela UE — então perceber-se-á também o caldo externo em que a crise portuguesa está mergulhada.

Mas qual “esquerda”?

Neste quadro, não espanta que toda a comunicação social, com um genuíno instinto situacionista, apresentasse José Sócrates como a voz “da esquerda” contraposta à direita personificada pelo governo. Na verdade, interessa ao poder que a disputa política que se avizinha (tornada inevitável pelas circunstâncias descritas) seja fixada dentro de limites controláveis. É esta “esquerda” representada pela truculência de Sócrates que convém ao poder e ao regime – porque enquanto tudo se passar entre ela e a direita, nada de essencial mudará.

Qualquer regime tem a sua esquerda, o seu centro e a sua direita. É dentro de um tal esquema, cingido aos limites do actual regime, que se tornou voz corrente que o PS representa o centro ou mesmo a esquerda, por comparação com o PSD ou o CDS (como o BE e o PCP serão, nesse caso, a “extrema-esquerda”, para usar ainda os termos que essa voz corrente usa). Mas se alargarmos o campo de visão para além dos limites do regime e do sistema social dominante, e se atentarmos na prática política do PS, então a postura actual do PS e a ofensiva do regressado Sócrates apenas representam mais uma de muitas disputas entre facções burguesas pela primazia política, agora num momento particularmente agitado da existência do país.

Na verdade, o que há de politicamente diferente, naquilo que realmente conta, entre Sócrates e a direita representada por Passos Coelho? Quais são os limites da discussão que agora, pelos vistos, se abriu? Fundamentalmente, uma diferença de fórmula: menos austeridade contra mais austeridade. “Parem com a austeridade!” proclamou Sócrates, não dizendo assim mais do que a direcção do PS tem dito ultimamente.

Mas foi o PS e Sócrates que levaram a austeridade a cabo em sucessivos PECs (dando continuidade aliás à acção dos governos anteriores do PSD, concretamente atacando a legislação laboral); e tanto Sócrates como o PS de hoje continuam a manter um respeitinho reverente pelo pacto assinado com a troika, fazendo uma ardilosa, quanto vazia, distinção entre um pacto bom (o que foi assinado) e um pacto mau (o que está a ser aplicado). Descontadas as subtilezas de linguagem, ressalta um traço comum: o castigo das classes trabalhadoras, não só através das penalizações salariais e dos subsídios sociais, mas através também de toda a legislação laboral e social que retirou direitos e foi degradando as condições de vida da população assalariada.

Foi o PS quem abriu portas à direita

Mais: foi esta política levada a cabo pelo PS (já sob pressão da crise internacional) que abriu portas à direita e guindou PSD e CDS ao governo. Lembremos que essa política de ataque às classes trabalhadoras permitiu inclusive ao PSD aparecer nas eleições de 2011 a dizer “basta de austeridade”, isto é, como crítico “pela esquerda” do PS. Idem com o presidente da República, que, no seu tom de oráculo, foi dizendo que “há limites” para os sacrifícios.

“Embuste”, diria José Sócrates. Claro que sim. Mas um embuste a que o PS abriu caminho. Culpar agora o BE e o PCP, como fez Sócrates e como corre nos meios PS, por terem rejeitado apoiar o governo de então e o seu PEC IV, e culpar em última análise a oposição popular às medidas do governo Sócrates é de um cinismo revoltante que só significa uma coisa: Sócrates e o PS acham que toda a oposição e os trabalhadores deviam deixar-se submeter à sua política de esbulho para evitar a política de esbulho do governo PSD/CDS. A tanto se resume a sua alternativa. Não concebem que os trabalhadores tenham uma posição independente e rejeitem tanto a política do PS de então como rejeitem hoje, ainda com mais veemência, a mesma política de base levada a cabo pela coligação PSD/CDS.

Solo fértil

O solo em que esta disputa agora se trava é a crise, sem saída à vista, que vai corroendo o poder das classes dominantes portuguesas. Crise das contas públicas, crise institucional e política, crise social. E tudo isto é ditado pela frágil base material em que o capital português se move, marcada pelo colapso da economia.

A evolução dos protestos de massas, que vieram sempre em crescendo desde antes da queda de Sócrates (confirmando que nem a política dele nem a dos seus sucessores é tolerada), mostra que largas camadas das classes médias se deslocaram para o campo da oposição de rua, em grande parte por verem a ineficácia da oposição institucional, mas também por sentirem que têm de tomar na suas mãos a resposta à situação.

Isto quer dizer que uma parte daquelas camadas, normalmente esteios importantes do poder — e que alimentaram a sucessão, em ciclo vicioso, de governos ora do PS ora do PSD — se distanciaram da grande burguesia, identificada nos barões da finança, do grande comércio e da grande indústria. A base do poder estabelecido nos últimos 30 e tal anos sofre assim uma erosão importante. As classes proletárias, as que primeiro e mais dramaticamente sofrem os efeitos da crise — e cujas greves e manifestações, no entanto, sempre foram desconsideradas e dadas como “inúteis” — vêem assim reconhecida a razão dos seus protestos e ganham, em termos objectivos, um importante aliado.

A tentativa de evitar males maiores

A recente guinada oposicionista do PS e a entrada em cena de Sócrates (com o espavento que lhe foi dado) preenchem uma função precisa neste quadro: mostrar-se à esquerda do governo (o que não é difícil), colher os frutos do descalabro a que a coligação chegou e fixar nesse ponto — o da defesa de uma austeridade “moderada”… — a contestação de massas que cresceu desde início de 2010. Objectivo: salvar enquanto é tempo o regime de abalos mais fundos.

A crise portuguesa é uma parcela da crise geral do capitalismo, agravada tanto pela dependência do país face aos grandes centros europeus como pela dependência da burguesia nacional diante dos seus primos de além fronteiras. E a política europeia de austeridade, longe de ser cega, tem o fito de drenar todo o capital que puder dos países dependentes do Sul para os países dominantes do Norte.

É pois materialmente e subjectivamente inútil esperar que as classes dominantes portuguesas arranjem modo de responder à crise satisfazendo, minimamente que seja, as necessidades sociais da população. Esta incapacidade tem de ser atacada para além e por fora das disputas, absolutamente estéreis, entre facções burguesas — como a que agora se desenha na figura de um Sócrates vestido de D. Sebastião ou de um PS travestido de “esquerda” e inimigo da austeridade.

Romper o nó

Os anos mais recentes mostraram que foi a entrada em cena, em grandes acções de rua, de centenas de milhares de trabalhadores revoltados, fartos de serem sacrificados, o factor que deu ao povo a possibilidade de ter uma voz no rumo dos acontecimentos. São essas massas trabalhadoras que podem romper a lógica “mais austeridade/menos austeridade” em que o poder pretende encerrar o problema da resposta à crise; e assim romper o nó em que a vida política portuguesa se encontra.

A exigência própria aos interesses dos trabalhadores e das massas populares não é a de partilhar os custos da crise, mas a de fazer o capital pagar a crise. É essa a ideia que pode prolongar, reforçar e dar norte aos protestos que se levantaram nos anos mais recentes.


Comentários dos leitores

afonsomanuelgonçalves 1/4/2013, 18:27

A resolução da crise não está, julgo eu, na exigência que seja o capital a pagar a crise, mas no derrube do próprio capital. Enquanto o capitalismo governar a sociedade, terá que ser o trabalho obrigado a pagar qualquer crise social e económica em benefício da prevalência do capital na situação de poder dominante.

JMLuz 2/4/2013, 17:08

Claro que enquanto existir capitalismo, serão os trabalhadores a pagar as suas crises, mas quando se coloca a palavra de ordem para que seja o "capital a pagar a crise" está-se a apelar à luta e a uma nova correlação de forças que tem por objectivo derrotar o sistema capitalista.

António alvão 6/4/2013, 15:04

Como é que alguém, que se inspirou na ditadura fanática estalinista de Enver Hoxha tem coragem para defender a luta pelo socialismo numa perspectiva comunista? Mas que socialismo ou comunismo? O tutalitário? vindo de quem vem, não vejo outro!
Hoje, ninguém consegue esconder a sua matriz ideológica.
No marxismo só há uma via revolucionária: a dos conselhos operários, de resto ou temos autoritarismo ou social-democracia, ambas as coisas são más.
O socialismo e comunismo

António alvão 6/4/2013, 15:37

Nota:
Não completei a ultima frese, queria dizer: - O socialismo e comunismo são uma doutrina politica e social de alternativa ao capitalismo, para socializar, libertar, emancipar em liberdade os oprimidos económicos, etc.
Obrigado, e os meus cumprimentos.
AA.


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