“O povo é quem mais ordena”

António Louçã — 28 Fevereiro 2013

O colectivo que convocou a manifestação de 2 março lançou, na campanha para preparar essa manifestação, a série de acções a interromper  discursos de ministros, ao som da “Grândola, Vila Morena”. Foi uma forma, pacífica mas incisiva, de chamar a atenção para o ror de mentiras que encobre uma política devastadora. Com imaginação e criatividade, os e as organizadoras dos protestos granjearam simpatia em larguíssimas camadas da população.

Os ministros, como sempre fazem quando se sentem encurralados, como já tinham feito em 15 de setembro perante a manifestação que os tratava de “gatunos”, tentaram fingir que não era com eles, colar-se aos protestos e lisonjear os protestatários. Fê-lo, na forma alvar que lhe é própria, Miguel Relvas, que por alguma razão insondável tinha sido convidado para um “Clube de pensadores”. Fê-lo também Passos Coelho, ao homenagear a “forma simpática” como fora interrompido.

O que aqui nos interessa não é tanto essa cultura de equívoco que o Governo alimenta e tem de alimentar, para vender o seu peixe estragado. Interessam-nos, sim, os equívocos que, à esquerda, criaram um terreno favorável para a demagogia confusionista do Governo – porque, esses, depende de nós corrigi-los.

E o primeiro é o que consiste em desvirtuar a “Grândola”, símbolo da revolução, e em apresentá-la como um símbolo da democracia. Porque esta deturpação de sentido permite a Coelho, Relvas, Gaspar & Cª introduzirem à socapa as suas vozes cacofónicas num coro de “Grândola”, a dizerem que, sim senhor, “o povo é quem mais ordena”, que o povo ordenou pô-los, a eles, no Governo e que só o povo pode ordenar o fim desta política em 2015.

Embora este Governo continuamente viole as leis e a Constituição, e embora se justifique denunciar cada uma dessas violações, é errada a resposta que pretende fazer deste Governo uma aberração excepcional, em contraste com o bom uso da Constituição e da democracia. Porque todos os Governos desde 1975 têm sido fiéis serventuários do capital e porque este só se distingue dos outros pelo seu grau de ferocidade. Ele não constitui uma excepção, e sim uma aplicação mais radical do que tem sido regra invariável.

Na democracia que temos, “quem mais ordena” não é, na verdade, o povo, e sim os Ulrichs, Belmiros e Soares dos Santos. Não estamos a falar da democraticidade espontânea e comunitária que pode criar-se à margem do poder político numa terra de gentes solidárias, e muito menos estamos a falar num regime moderno de democracia directa para governar o país e o mundo, que na maioria dos casos só existiu em clarões muito efémeros e muito revolucionários da história recente. Estamos a falar de uma democracia burguesa, que manipula o voto do povo para submeter o povo ao seu tacão de ferro.

Os e as organizadoras dos protestos puseram, por isso, o dedo na ferida. A “Grândola” continua a ser um símbolo irrecuperável para esta democracia plutocrática. Assim nós evitemos facilitar a sua recuperação.


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