Testas de ferro e cheques carecas
António Louçã — 24 Dezembro 2012
O modo de pagamento das privatizações em curso é um livro aberto sobre a degenerescência do pessoal político da burguesia.
O Governo decidiu vender o BPN ao BIC e avançou logo com milhares de milhões, para o banco comprador fazer a fineza de pagar um preço de escassas dezenas de milhões. Não vamos aqui ao “detalhe” de quantos milhares nem de quantas dezenas, porque as desculpas esfarrapadas se multiplicam como cogumelos e obscurecem o que devia ser limpidez cristalina dos números. Fiquemo-nos pela ordem de grandezas: milhares de milhões do contribuinte, contra dezenas de milhões dos rentistas petroleiros de Angola, que afinal ainda se fazem rogados e apresentam novas condições para cumprirem a sua parte.
O Governo decidiu vender a TAP ao cosmopolita Efromovich, numa proporção parecida do que devia pôr e do que esperava receber. As desculpas esfarrapadas eram, neste caso, sobre as centenas de milhões que Efromovich deveria investir depois na TAP privatizada, para saldar o seu passivo. Mas a ninguém passava despercebido que essas centenas seriam já investidas em coisa sua e portanto não podiam ser contabilizadas como parte do preço. Além disso, Efromovich não apresentava sequer garantias de pagar pela TAP os peanuts apalavrados. No fim de tudo, ele teria comprado a transportadora aérea TAP com facilidade igual à do BIC na compra do BPN, não fora o caso de o Governo já estar a meter água por todos os lados e suportar mal o escândalo de mais um cheque careca.
O Governo tem agora na calha, para privatizar ao desbarato, a RTP, a ANA, os Estaleiros de Viana. No caso da RTP, não oferece mais garantias do que Efromovich aquela sociedade que tem no Panamá uma caixa postal a fazer de sede e três homens de palha sabe-se lá ao serviço de que interesses. A cobertura dos seus cheques com o famoso petróleo de Angola continua a ser uma miragem. E o Governo, como a admitir antecipadamente que a NewsHold só fará o favor de ficar com a RTP se lhe for oferecido um preço de liquidação, já anda a fabricar o esquema dos 49% – conto do vigário para vender por metade do preço, oferecendo ao comprador a totalidade da gestão.
Mas não será tudo isto a imagem perfeita da modernidade? Não será este o capitalismo do futuro, sem preconceitos nem escrúpulos? À primeira vista, sim. O desbragamento deste Governo com a sua lei da selva parece um desmentido peremptório do que dizia o Manifesto Comunista: “O moderno poder de Estado é apenas um comité que administra os negócios comuns da grande burguesia”. E o que vemos aqui não é, na verdade, a administração de “negócios comuns” de uma classe e sim a pequena intriga a favor dos negócios particulares do BIC, da NewsHold ou da Synergy.
Notemos no entanto que esta degradação dos “homens de Estado” em meros testas de ferro constitui uma evolução lógica daquele poder de Estado que antes representava a parte burguesa da sociedade contra o seu conjunto e agora apenas representa a parte mafiosa da burguesia contra o seu conjunto.