Palavras mágicas

António Louçã — 3 Julho 2012

À falta de resolverem problemas, os governos do capital criam cortinas de fumo: palavras, palavras, mais palavras. E como as peneiras não tapam o Sol, e as palavras tão-pouco, todas se desacreditam rapidamente e são substituídas a um ritmo estonteante. Assim, a palavrinha-chave era, há uns tempos, o défice. A obsessão era tal que alguém se sentiu na necessidade de enunciar essa lapalissada, de que “há vida para além do défice” – uma verdade verdadeira desde o tempo dos primeiros protozoários, mas nem por isso muito relevante para lidarmos com problemas dos seres humanos no século XXI.

“Crescimento”

Depois, a palavrinha mágica passou a ser “competitividade”. Como a obsessão do défice secava toda a vida para além dele, lançou-se a nova fórmula para insinuar que a razia cometida até aí em nome do equilíbrio orçamental tinha também uma racionalidade económica. Cortava-se salários, destruía-se emprego, desmantelava-se ou esvaziava-se serviços públicos, mas era preciso lembrar que tudo isso prometia uma luz no fundo do túnel, quando os empresários, encorajados por uma exploração facilitada, voltassem a investir. Homenageando involuntariamente a dialéctica hegeliana, os nossos fabricantes de opinião advogavam, sem se desmancharem a rir, a tese de que se destruía emprego para se criar emprego.

Mas as acrobacias retóricas dos aprendizes da dialéctica nada podem contra os factos: menos emprego e menos salários implicam menos negócios. Nenhum burguês em seu perfeito juízo vai contratar mais trabalhadores, se conhece a impossibilidade de escoar a produção. Não se contrata mais pessoas por ser mais fácil despedi-las, se a produção dessas pessoas apenas vier empilhar em armazém produtos invendáveis. Quem pode querer “competir” por um mercado cada vez mais reduzido?

Em desespero de causa, deixou-se então cair, também, a “competitividade”, agora menos popular na linguagem dos nossos ideólogos de serviço. E adoptou-se uma outra, mais vaga e mais vazia. A moda agora é falar em “crescimento”. Na sua campanha eleitoral, Hollande começou por dizer que a austeridade não bastava e que era preciso virar para uma política de crescimento. Agora, faz-se fotografar ao lado dos chefes do G-20, reunidos para aproveitar a cimeira da NATO, e, sem contradita, deixa Merkel afirmar que a política de austeridade está, sempre esteve, ao serviço do “crescimento”. Para quê então alguma viragem?

Palavras, palavras, palavras, para toda a política ficar na mesma, e para a sociedade ir de mal a pior. O que tanto palavreado nos quer incutir é uma confiança cega em que a burguesia investirá dinheiro na produção se forem satisfeitas todas as reivindicações que tem na luta de classes. Mas a burguesia não merece confiança alguma e não tem o estofo para salvar a sociedade da crise. Não por um juízo moral que façamos contra um suposto 1% de Scrooges, demasiado avarentos para porem os seus recursos ao serviço do bem comum, não: mesmo o burguês mais honesto e filantrópico não pode proceder doutro modo. É mais forte do que ele. É a sua natureza de classe.

Confiança, só podemos ter na classe trabalhadora. Não a confiança cega e romântica nuns supostos 99% que queiram o bem comum, não: mas a confiança em que só poderá fazer alguma coisa para reanimar a economia aquela classe que tem interesse em defender o trabalho, o emprego, o salário. Não é a certeza de que a classe trabalhadora vai fazer o que é necessário, mas a certeza de que só ela poderá fazê-lo, por ter um interesse próprio naquilo que é do interesse geral.

“É a economia, estúpido”

O ministro das Finanças veio agora a público manifestar a sua surpresa por ter havido uma quebra nas receitas fiscais. Vítor Gaspar, cuja competência técnica, de tão universalmente elogiada, só pode mesmo estar acima de qualquer suspeita, arrisca-se, assim, a ser uma espécie de Vítor Constâncio da direita: também o antigo governador do Banco de Portugal, incensado por um coro de aduladores, deixara cometer mesmo em baixo do nariz a fraude gigantesca do BPN, que qualquer leigo já teria mandado investigar há muito.

Com efeito, não é preciso ser um génio da ciência económica para prever que a brutal política de austeridade aplicada só podia conduzir à quebra de receitas fiscais. Qualquer leigo já tinha percebido isso, há muito tempo. Mas Gaspar surpreende-se: à força de querer controlar o défice, sufoca a economia. Agora, o défice que estava a expulsar pela porta da austeridade reentra pela janela da receita fiscal.

Vida para além do défice? É vago. Que vida é essa, que há para além do défice? Retomando a frase de campanha do insuspeito Bill Clinton em 1992, diríamos: é a economia, estúpido. Mas a importância que atribuem à economia os nossos governos testas-de-ferro da especulação financeira está bem documentada no terceiro Mister Magoo desta tríade míope, escolhido, esse, para dar a cara pelo fracasso num Ministério que pomposamente ainda se diz da Economia: o impagável Santos Pereira. Quem entrega a economia ao Alvarinho, é porque não a leva a sério.

“Orgulhosamente sós”

A Alemanha e a França tinham sido as primeiras a violar os limites orçamentais apalavrados com parceiros europeus. A Grécia foi pioneira a pedir o resgate e não há governo que consiga impor-lhe as imposições da troika. A Espanha recusa o resgate num dia e pede-o logo a seguir. A Itália para lá caminha. A crise aberta em Espanha, a anunciada em Itália, vêm mais tarde que as outras, mas vêm com todo o peso de médias potências europeias.

Só o Governo português não se cansa de repetir sempre a mesma ladainha: “Não somos gregos”. Pela resma de desgraças que para aí vai, bem podia dizer também: “Não somos espanhóis, não somos italianos”. A mensagem é invariavelmente a do bom aluno – único que se aproveita numa classe inteira. Mas este bom aluno nada aprendeu de História: porque a ladainha da originalidade portuguesa não é mais do que o slogan salazarista do “orgulhosamente sós”.

E o analfabetismo histórico deste Governo não diz respeito apenas ao slogan: di-lo também às suas consequências. O orgulho solitário de não descolonizar foi o que conduziu a uma outra originalidade portuguesa: a revolução de Abril. Era o que Trotsky chamava a lei do desenvolvimento desigual e combinado: um povo a quem cinicamente se gaba os “brandos costumes”, por deixar pacificamente que lhe comam as papas em cima da cabeça, também pode ser aquele que na primeira oportunidade dê corpo a uma explosão revolucionária.


Comentários dos leitores

afonsomanuelgonçalves 3/7/2012, 16:46

Tudo isto está certo, mas presumir que um povo adormecido durante séculos de domesticação e obediência a uma autoridade que não se questiona, pode num determinado momento levantar-se e provocar um abalo social que tudo ponha em causa, parece-me que nem a dialéctica hegeliana consegue prever, nem tão pouco aceitar que se insira nas categorias da sua lógica extremamente racional.
Assim nem na 1ª nem na 2ª oportunidade a explosão revolucionária é possível. Somente um trabalho esforçado numa luta consequente e exemplarmente estruturada como aconteceu noutros países no século passado pode fomentar a transformação social absolutamente necessária para a libertação e conquista do poder pelo povo trabalhador. No entanto, pelo que vejo não só a sociedade está trezentos anos atrasada em relação à revolução russa de 1905, como a sua força avançada de combate está trezentos anos atrasada em relação aos quadros dirigentes da revolução de 1917. Todavia não podemos ignorar que a classe trabalhadora grega provou há pouco tempo que não esqueceu a sua corajosa trajectória histórica pela conquista da liberdade e do socialismo. Temos aqui um óptimo ponto de partida para que uma nova Europa renasça das cinzas em que está mergulhada.


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