Pela subida dos salários, sim. Mas com que armas?

Urbano de Campos — 4 Junho 2012

No discurso do 1.º de Maio, em Lisboa, e uma semana mais tarde, após uma reunião com o ministro a Economia, o secretário-geral da CGTP defendeu a subida dos salários, tanto do salário mínimo como dos demais. Tirando o patronato, ninguém se atreverá a contestar tal reclamação. Inteiramente de acordo, portanto, quanto ao objectivo. Mas o mesmo não podemos dizer quanto à argumentação que Arménio Carlos usa em defesa da proposta. E porque essa argumentação denuncia a fraqueza política da reivindicação, nos termos em que é feita pelo líder da CGTP, importa determo-nos um pouco sobre os argumentos usados.

Em declarações às cadeias de televisão, AC referiu a proposta de subida de salários como necessária para “dinamizar o mercado interno”, sublinhando que as “empresas podem também sair beneficiadas e vender mais e se vendem mais criam mais emprego e se criam mais emprego significa que a economia está a crescer”. A conclusão de AC surge então sem surpresa: “Este é o salto qualitativo que temos de dar na nossa economia”.

Assim apresentada, a medida seria então benéfica para toda a gente, tanto para patrões como para assalariados, e seria mesmo a via para tirar do lodo “a nossa economia”, isto é, o capitalismo nacional. Uma panaceia, no verdadeiro sentido do termo.

Há, porém, uma pergunta de algibeira a fazer: Se a medida é assim tão boa, até para o capital, porque é que não foi já posta em prática? Porque é que os patrões não tomaram eles próprios a iniciativa? E, sobretudo, porque é que insistem em fazer exactamente o contrário – baixar salários?

A crise vista às avessas

A argumentação de AC, por muito aliciante que possa soar, não tem relação com a realidade. AC vê a crise do capitalismo às avessas.

Na verdade,
– Não é por falta de consumo que o capitalismo está em crise, é por excesso de produção. Produção que não se venda significa mais-valia que não se realiza, lucro que não retorna ao capital investido, travagem na acumulação.

– Havendo excesso de produção, não só diminui o investimento produtivo como se dá a liquidação do capital menos competitivo. O capital foge para outras aplicações (nomeadamente a especulação), fecha as empresas e põe os trabalhadores na rua.

– O ciclo vicioso fecha-se, então: os bancos não emprestam à produção porque esta não tem rentabilidade assegurada nem retorno garantido do capital investido; o crédito seca porque os bancos temem perder o dinheiro que emprestam.

A crise é, portanto, o resultado de uma quebra da rentabilidade, da “lucratividade”, do capital. É esta queda da taxa de lucro que afasta da produção grande parte do capital, tornando-o improdutivo. Muito dele acumula-se, então, na finança, tentando ganhar em juros o que não ganha em lucro.
Ora, é precisamente para tentar contrariar a queda da taxa de lucro e fazer subir a rentabilidade dos investimentos que o capital despede e baixa salários.
Os baixos salários (e a política patronal de abaixamento dos salários, bem como de despedimentos) são, pois, o resultado e não a causa da crise económica – como de resto temos visto pela evolução dos acontecimentos desde, pelo menos, 2008.

Para citar o que foi dito por uma autoridade no assunto:
“Qual é a lei geral que determina a queda e a subida do salário e do lucro na sua relação recíproca? Estão na razão inversa um do outro. A quota-parte do capital, o lucro, sobe na mesma proporção em que a quota-parte do trabalho, a jorna, desce, e inversamente. O lucro sobe na medida em que o salário desce, e desce na medida em que o salário sobe.” (Karl Marx, Trabalho Assalariado e Capital, 1847-49)

Um esquema fora da realidade

Como se pode então tentar convencer os patrões a aumentarem salários nestas condições? E, ainda mais, de que lhes é vantajoso aumentar os salários?

O esquema que AC parece ter em mente só poderia funcionar, eventualmente, em duas condições:
Uma, seria os negócios estarem em expansão e o capital ter, por isso, falta de mão de obra. Não é o caso, obviamente.

Outra, seria o Estado substituir-se ao capital privado e promover investimentos geradores de uma procura que arrastasse depois o investimento privado. Foi esta a política seguida no mundo capitalista após a depressão económica dos anos de 1930. Mas o êxito dessa via de intervenção estatal contou com a destruição massiva de capital provocada não só pela depressão como sobretudo pelas duas grandes guerras.

Passado o efeito de expansão do capitalismo nas três décadas posteriores a 1945, essa via de intervenção estatal chegou aos limites e fracassou nos anos 70-80. A queda da taxa de lucro dos capitais, ou seja a quebra da sua rentabilidade, que acompanhou o crescimento económico dessas três décadas; o aumento exponencial da produção e da concorrência; a redução dos salários relativos (e portanto do poder de compra dos trabalhadores) quando comparados com o volume atingido pela produção – conduziram a um excesso de bens, tornados invendáveis, e a um excesso de capital sem aplicação produtiva. É essa a raiz da presente crise.

A miragem do mercado interno

Dir-se-á ainda, na lógica de AC de “dinamizar o mercado interno”: mas não há tanta gente com carências? Não é essa gente um mercado potencial? Não poderia fazer-se um plano nacional, digamos, que produzisse para ir ao encontro das necessidades básicas dessa população carenciada?

Em abstracto tudo parece possível. Mas, como se sabe, não é para essas pessoas que o capital produz. O capital produz para lucrar e nenhum capitalista está na disposição de subir os salários dos seus trabalhadores para eles poderem comprar mais bens que outros capitalistas produzem.

Além disso, não se pode esquecer que a integração europeia é um facto. O capital português tem hoje os seus interesses interligados com os de outros capitais europeus; e a sua dependência face aos grupos mais poderosos fazem dele uma peça subalterna sem vida própria. É por isso que o nosso mercado interno é diariamente devassado, em todos os sectores, pela concorrência dos capitais europeus mais poderosos – quando não pela aliança destes com os grupos portugueses dominantes.

Produzir para satisfazer as necessidades sociais, sobretudo as das populações mais pobres, não só significaria subverter a lógica de funcionamento capitalista da produção, que tem por base o lucro a todo o custo, como ainda implicaria afrontar aquela teia de interesses.

A “dinamização do mercado interno”, portanto, nunca seria, seguramente, uma decorrência pacífica de qualquer política – menos ainda um resultado automático do encadeado apresentado por AC entre a subida dos salários e o crescimento económico.

Atacar as bases do sistema capitalista

Não é então possível, nestas condições, defender a subida dos salários e obter uma subida efectiva dos salários? É possível, sim – na condição de o capital ser forçado a ceder perante a luta dos trabalhadores. Mas não é esta a hipótese colocada pelo secretário-geral da CGTP, que procura fazer omeletas sem partir os ovos.

AC parece querer convencer o capital de que está a ver mal o filme. Na verdade a sua mensagem dirige-se aos trabalhadores. No fundo, está a dizer-lhes que podem ter esperança de alterar a penúria em que vivem sem tocar nos privilégios do capital, ou até beneficiando-o com o bónus de um “crescimento económico”. É aqui que reside a fraqueza política dos argumentos de AC.

A realidade mostra o contrário do que ele sugere: diante da crise actual, que é sinal da decadência geral do capitalismo, a luta dos trabalhadores não pode deixar de atacar as bases do sistema. É o sistema de exploração que tem de ser posto em causa – não há ganhos para ambos os lados, nem mesmo no que respeita ao nível dos salários.

Se não quiserem ser derrotados à partida na justíssima exigência de subida de salários, os trabalhadores são pois forçados pelas circunstâncias a enfrentar a luta com a noção de que ela não é viável sem ferir os interesses do capital. As gritantes contradições de interesses que podemos observar trazem ao de cima a irracionalidade do sistema capitalista; combatê-la é portanto um factor de mobilização dos trabalhadores para a luta. Tem todo o sentido, por exemplo, reduzir as horas de trabalho sem reduzir salários, a fim de dar trabalho a todos; ou subir os salários e pensões para assegurar um mínimo de condições de vida e reduzir as colossais disparidades de rendimento.
Mas isto significa atacar os privilégios das classes dominantes. Tudo depende, portanto, da capacidade dos trabalhadores para reerguerem a luta contra o capital – não do bom senso dos capitalistas.

Os argumentos de AC, pelo contrário, adoptam uma postura de senso comum (na verdade uma completa ilusão), segundo a qual se pode fazer o país sair da crise (e porque não, já agora, a Europa e o mundo, aplicando-lhes a mesma receita?) sem tocar nas regras de funcionamento do sistema capitalista.

Vai assim ao encontro não do espírito de classe dos trabalhadores, mas dos espíritos ingénuos que julgam que o melhor caminho para resolver os conflitos sociais está na busca de uma fórmula que concilie todos os interesses – não vendo que eles são antagónicos.

É justamente nas épocas de crise como a que estamos a viver que este antagonismo fica mais claro – e se torna, portanto, não só necessário mas, de certo modo, mais fácil atacar pela base o sistema de exploração.


Comentários dos leitores

afonsomanuelgonçalves 4/6/2012, 14:15

S. Mateus na sua carta aos coríntios afirma num determinado parágrafo: «deixai-os que são cegos, e quando um cego guia outro cego ambos vêm a caír no barranco». Esta conclusão aplica-se, de forma inequivoca a A. Carlos nas declarações absolutamente infelizes que proferiu e que acabam de ser analisadas no artigo acima referido.
Contudo não se percebe muito bem a admiração e surpresa do autor do artigo uma vez que quase toda a gente de esquerda minimamente familiarizada com a economia política sabe o ABC deste imbróglio. Todos menos A. Carlos que não tem feito o trabalho de casa desde há quase 40 anos. Como podemos ver a luta dos trabalhdores está obstruída por esta gente que ficou nas trevas do revisionismo e daí não sai por mais paciência e comiseração que se possa dispensar a esta corrente moralista aparentemente ligada aos desfavorecidos do sistema.

J.M.Luz 4/6/2012, 15:23

Assim, sim, estamos no bom caminho. Parabéns pelo excelente artigo.

J.M.Luz 7/6/2012, 14:07

" É justamente nas épocas de crise como a que estamos a viver que este antagonismo fica mais claro - e se torna, portanto, não só necessário mas, de certo modo, mais fácil atacar pela base o sistema de exploração". Mas não esperemos que este seja atacado por quem actualmente dirige o movimento sindical, é necessário criar uma alternativa política que se determine a isso.
Assim era desejável que se promovesse encontros e debates com essa finalidade.

António alvão 7/6/2012, 17:03

Esta CGT é correia de transmissão, já sabemos de quem. O seu objectivo é lutar pelos aumentos dos salários e ir votar pelas eleições, e não lutar pela transformação da sociedade, como era tradição dos sindicatos, antes destes serem controlados pelos partidos _ implicava, portanto, sindicatos revolucionários. Estes partidos e estes sindicatos, tornaram-se instrumentos obsoletos; filhos do "socialismo real" - os netos deste «socialismo» acusam seu pai de revisionismo, reformismo, etc. E não avançam com o contraditório ao tal revisionismo e reformismo!
A transformação da sociedade não é, nem pode ser exclusivo dos sindicatos e trabalhadores. Mal de nós, mas sim, a todos/as aqueles/as que sonham por um Mundo sem parasitismo das classes e instituições dominantes _ destruamos as instituições da desigualdade (...) _ As classes parasitárias aproveitam, duma forma repugnante, a baixa escolaridade, cultural e intelectual das classes desfavorecidas para as escravizar. É lamentável os partidos seguir-lhes os mesmos passos, no fundo está tudo ligado. Não é por acaso que a esquerda mais ortodoxa se queixa dos movimentos cívicos (...) de jovens, destes serem anti-organização, de agirem duma forma anárquica, etc. Na Coreia do Norte não existe nada anárquico, nem havia na
antiga Albânia, etc. etc. Não há nada mais reaccionário que é criar-se um paizinho para levar seus filhos pela mão, ainda por cima pelo caminho errado! Nunca nenhum homem deveria manipular outro homem! O melhor
governo é aquele que contribui para a auto-governação do seu povo. É na comunidade que se encontra a fraternidade, igualdade, liberdade e a criação de riqueza colectiva. Nós humanos poderíamos aprender com a comunidade das abelhas, onde a riqueza acumulada atinge níveis elevadíssimos, a poder desfrutar seis meses no ano de lazer! Mas a besta-humana interiorizou a inveja e a ganância pela propriedade privada. Enquanto estivermos nesta situação, viveremos a confusão, a luta das classes, a corrupção, o crime, etc.
A revolução não nos convida por e-mail, nem vem ter connosco ao sofá _ revolucionários precisa-se _. Se não lutemos, temos aquilo que merecemos!!! Saudações. A.A.

João Santos 14/6/2012, 0:21

O artigo, está correcto no campo ideológico e teórico, a leitura leva-nos ao subjectivismo e longe da realidade do movimento operário, desconhecimento da capacidade de luta e limitações ao seu desenvolvimento, escrever sem o suporte da realidade da vida dentro das fábricas e limitações impostas, leva-nos a escrever do que desconhecemos. Não é por acaso que as criticas se reportam a Carlos Arménio (CGTP) e subjectivamente ao PCP, por acaso únicas organizações de classe que organizam os trabalhadores para a luta. Quem não sabe que as lutas devem atacar o sistema capitalista? Participo em todas as lutas dos trabalhadores, apoio as greves e vou a todas as manifestações. Foi-me entregue um vosso panfleto numa manifestação da INTER, aproveitando a organização e capacidade de mobilização do que criticam lá estava uma mão envergonhada estendida para quem deseja o encontro com "Há que lutar!
O capitalismo não nos serve". Discordando com os métodos de luta e organização da INTER e PCP, que lutas têm desenvolvido, que propostas têm para a organização da classe operária e camponeses? Ou vão continuar a aproveitar as manifestações da INTER para destribuir uns panfletos? Espero que no próximo artigo façam uma análise da situação política do país, as condições da classe operária, para enfrentar as lutas que se avizinham. LENINE escrevia: "Estado instrumento de exploração contra a classe oprimida".

António alvão 24/6/2012, 14:13

Se LENINE escreveu: "Estado instrumento de exploração contra a classe oprimida", Marx escreveu-o primeiro, por que não se cumpriu Marx durante setenta e tal anos, na URSS e nos outros países onde os partidos comunistas estiveram e estão ainda no poder?
O amigo Santos poderia ter dito quais os" oportunistas" que distribuíram panfletos nas manifestações da INTER? Da INTER fazem parte outros sindicalistas de outras organizações partidárias -- menos os Anarco-sindicalistas (por questões de que tem a ver com autoritarismo e anti-autoritarismo) - Portanto, PC não pode ser dono das manifestações, nem das avenidas, por muito que se junte à policia do capitalismo troicano, por causa das "infiltrações" , mas de que infiltrações o PC tem medo? Da policia não é, dos capitalistas também não? A não ser que seja de pessoal anti-capitalista?
A mentira do socialismo do século passado e do sectarismo, custou a vida a milhões de vidas indefesas! É obra!
Cumprimentos. A.A.


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