Que mudanças houve na França e na Grécia?

Manuel Raposo — 14 Maio 2012

As eleições, por regra, não revolucionam os regimes que as promovem – quando muito, mostram os limites das mudanças comportadas por esses mesmos regimes. Mas há resultados que são sintoma de alterações que estão a operar-se, que espelham o movimento das classes nelas envolvidas. É o caso das eleições realizadas nos últimos dias em França (presidenciais) e na Grécia (legislativas). Todos os comentários têm dito o óbvio: que em ambos os casos “os eleitores” rejeitaram as políticas de “austeridade” e “penalizaram” as forças que as promoveram. Mas isso é ficar pela superfície da questão. Neste caso, importa mais ver de que modo e quem rejeitou a “austeridade”, e em que estado ficaram os regimes e as forças partidárias em resultado do voto.

Equilíbrio tornado instável

O equilíbrio político na Europa, como em quase todo o mundo capitalista mais desenvolvido, tem sido mantido pelo apoio – praticamente sem quebras – que as chamadas classes médias têm dado à burguesia capitalista. Esse apoio e esse equilíbrio expressam-se na rotatividade, sem surpresas, de governos dos partidos mais representativos dos interesses do capital que conseguem chamar a si a maioria do voto dessas camadas médias. Como é o caso, em França, da UMP de Sarkozy, ou dos seus equivalentes anteriores de Chirac ou D’Estaing; e do PS, hoje de Hollande, ontem de Mitterand. Ou como tem sido, no caso da Grécia, a alternância entre a direita da Nova Democracia e o Pasok. Ou como entre nós se tem passado entre PS e PSD.

Esta estabilidade, na aparência pacífica, traduz no entanto uma luta de classes surda em que praticamente todas as forças contrárias ao regime, nomeadamente as correntes proletárias, têm sido silenciadas e a sua acção bloqueada pelo papel de almofada desempenhado por aquelas classes médias.

A crise actual, porém, está a trazer a novidade de desgastar fortemente a condição de vida (perdas salariais, dificuldades do emprego, despedimentos, etc.) e, portanto, o estatuto social dessas classes médias. É assim natural que, perdendo boa parte das razões para manterem a crença no regime que as alimenta, se dê no interior dessas camadas um processo de divisão e de deriva política. Mas o resultado deste processo não é necessariamente um posicionamento anticapitalista, pelo menos da maioria dessas camadas. Em todo o caso, há sinais de que esta evolução vai pondo em causa as condições em que o poder da burguesia se exerceu praticamente desde o final da segunda grande guerra. Por isso importa, a meu ver, perceber o que a este respeito se verificou em França e na Grécia.

França dentro da norma

A primeira constatação é de que os dois casos são distintos, não podendo colocar-se os efeitos políticos das presidenciais em França a par do que se deu na Grécia.

Em França, a deslocação para “a esquerda” (isto é, para o PS) não altera o movimento pendular das últimas décadas, a não ser pelo facto de se terem passado 17 anos desde a última presidência dos socialistas. De resto, a margem mínima com que Hollande bateu Sarkozy (28,6% contra 27,2% na primeira volta e 51,6% contra 48,4% na segunda volta) nem sequer mostra uma notória deslocação “à esquerda”.

Em todo o caso, dois outros resultados parecem confirmar a erosão da tradicional base de apoio das duas maiores tendências do poder, de que acima se fala: são eles o voto importante na Frente Nacional, de extrema-direita (18%, terceira força política); e o crescimento, menos importante, da Frente de Esquerda (11%, quarta posição). Assinale-se ainda, a respeito destes dois partidos, para além da diferença de votos, a diferença política que consiste no facto de a FN se bater claramente por ideias de extrema-direita e a FG levar a cabo uma pálida crítica ao regime sem atacar as suas bases – não se verificando portanto a afirmação de uma esquerda anti-regime simétrica ao que faz a direita.

As duas principais forças do poder somaram, ainda assim, mais de metade dos votos (55,8%). Se lhes juntarmos a extrema-direita e o resto da direita chega-se a mais de 83%. Estes números são consistentes com o facto de as lutas sociais terem sido pontuais, de terem permanecido geralmente em baixo nível – tirando a grande onda radical do operariado, com o sequestro de patrões, na primavera de 2009. São consistentes ainda com a passividade com que os franceses em geral permitiram os actos imperialistas de Sarkozy contra a Líbia e a Síria.

Grécia fora dos eixos

O panorama grego é outro. Os resultados mostram uma clara fragmentação do bloco de forças central de apoio ao regime, na forma em que tem funcionado. A Nova Democracia e o Pasok somados ficaram pelos 32%, quando em 2009 tinham tido mais de 77%. As diversas forças de esquerda ultrapassaram os 34%, contra menos de 15% em 2009.

Essa fragmentação traduziu-se num grande crescimento da direita fascista, que saltou de 0,29% (19.600 votos) para 6,1% (434.700 votos). Mas foi maior o crescimento (de 1.006.000 para 1.750.000 votos) da esquerda que se opõe ao pacto com a troika e às medidas de “austeridade”, em que se destacam o Siryza, agora segunda força partidária, e o Partido Comunista.

A luta radical e persistente dos gregos não foi portanto em vão. Foi ela, seguramente, que contribuiu para mobilizar contra a política da burguesia boa parte dos trabalhadores e certamente uma parte das classes médias mais baixas atingidas pela crise. O descalabro dos partidos do poder mostra que a luta de rua dá frutos. Mesmo que uma mudança radical da situação pareça estar ainda longe, o regime foi fortemente abalado.

(A talhe de foice: a desvalorização que o secretário-geral da CGTP fez do radicalismo que muitas vezes esteve associado às acções de massas na Grécia – dizendo que não tinha “nada a ver com a luta dos trabalhadores ou do movimento sindical grego” e apontando-lhe mesmo propósitos provocatórios – mostra que Arménio Carlos leu mal os acontecimentos e que as lições que deles tira não são as que melhor servem aos trabalhadores portugueses.)

A mudança pode vir é da Grécia

Os mesmo comentadores que se apressaram a equiparar os resultados das eleições francesas e gregas – mas que não lhes evidenciaram as diferenças políticas nem o movimento social que lhes está na base – afirmam também que serão as propostas de François Hollande a alterar o rumo da União Europeia; e que isso pode vir a “aliviar a austeridade”, beneficiando os países intervencionados pela troika, nomeadamente a Grécia.

Ora, é exactamente o contrário que pode dar-se. A mudança de presidente na França não alterou o balanço de forças dominante e o papel de Hollande pode, por isso, ficar-se pelo discurso do “crescimento” a par da continuação de uma “austeridade mais suave”. Na Grécia, pelo contrário, as bases partidárias em que assentava o poder foram atingidas e, para responder aos riscos que isso implica, as potências europeias vão ser forçadas a prestar atenção ao sinal de aviso dado pelo povo grego.

Não é pois a “mudança” na França que vai dar uma saída à Grécia; é a mudança na Grécia que vai forçar a burguesia europeia a encontrar forma de evitar males maiores para todo o regime que governa a União Europeia.


Comentários dos leitores

J.M.Luz 15/5/2012, 10:35

Apesar de se opôrem ao "pacto" com a Troica e às "medidas de austeridade",o Syriza ao defender a "renegociação" da divida,(ou seja uma "austeridade" mais suave) e o seu apoio à continuidade da Grécia na UE e no Euro, não só contribuiu para continuar a alimentar-se ilusões quanto a este bloco imperialista inimigo do povo grego como evitou uma maior radicalização da luta social e uma derrota ainda mais expressiva ao ND e PASOK, como até e em última circunstância responsável, conjuntamente com as outras forças social-democratas, pela ascensão e reforço do grupo NAZI/Aurora Dourada junto de sectores populares atingidos pela crise económica capitalista. Lições que devemos retirar para a nossa situação concreta...
Já quanto às afirmações de Arménio Carlos, penso que merecia um maior desmascaramento e uma análise mais profunda.
Quanto ao resto estou inteiramente de acordo.
Abraço
JMLuz


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