O cretinismo constitucional da direita
António Louçã — 19 Abril 2012
Até aqui, era da esquerda que mais vezes vinham exigências de cumprimento da Constituição. Para quem joga à defesa, justifica-se lançar mão de todos os recursos, mesmo daqueles que só por si não garantem especial eficácia. Além de se denunciar as constantes violações da Constituição, com inteira legitimidade, fazia-se da luta contra as revisões constitucionais um verdadeiro cavalo de batalha.
Já esta prioridade era mais questionável, porque semeava a ilusão de que a lei fundamental pudesse constituir um dique ao revanchismo da burguesia. E assim se foi perdendo tudo na vida real mas conservando, por mais uns tempos, grande parte das promessas constitucionais. Perdeu-se a reforma agrária, o controlo de gestão, as nacionalizações, a gratuitidade tendencial da educação e da saúde – mas a pílula sempre foi sendo adoçada por continuarem consignados na Constituição as palavras que indicavam essas conquistas.
Agora, que já se foram os anéis e os dedos, calhou os donos da Europa virem exigir aos Estados nacionais um limite do défice orçamental inscrito nas várias constituições. Com a subserviência que o distingue, o Governo Passos-Gaspar-Portas foi logo a correr dar cumprimento aos desejos de Merkel. E é isso que agora passa no parlamento português, com uma maioria qualificada graças ao voto favorável do PS.
Já alguém comentou que a constitucionalização do limite do défice equivale a decretar a morte do Estado Social e a proscrever o keynesianismo. Certo: sem Assembleia Constituinte, sem debate público, sem referendo, pretende-se varrer de uma penada aquilo que era o fundamento da ordem burguesa do pós-guerra. E, de passagem, pretende-se inscrever nas leis fundamentais dos países a exclusão do keynesianismo em qualquer discussão política com relevância para o processo decisório.
Diga-se, em abono da verdade, a exclusão já existia: quando têm lugar eleições, e os partidos do arco do poder recusam qualquer crítica à sua esquerda com o argumento da inevitabilidade do memorando da troika, estão a reconhecer que tudo já foi decidido antes das eleições e que nada é dado ao povo para que decida. E em países como a Itália e a Grécia já se passou à fase seguinte, de colocar no poder governos sem qualquer mandato eleitoral mas com toda a confiança do FMI. As medidas de desmantelamento dos serviços públicos que todos os dias se sucedem tão-pouco esperaram por regras de ouro nem por tratados orçamentais. Ou seja: o golpe de Estado em curso só merece esse nome pela forma insidiosa como se negociou a sua aprovação e pela radicalidade da viragem face a princípios democrático-burgueses ainda hoje assumidos formalmente. Em tudo o mais, esta viragem apenas consiste em pôr no papel o que há muito vem sendo praticado.
Para já, não é desta votação que vem o maior mal ao mundo. Até aqui eram violadas todos os dias as garantias constitucionais conquistadas pela classe trabalhadora. E, com tantas violações da Constituição, quase apetece dizer que, ao inscreverem nela o limite do défice, os legisladores troikistas o condenam a ser espezinhado na primeira oportunidade, como tudo o que figura nesse maltratado documento, e como o governo espanhol já assumiu que faria no próximo ano. Se a direita acredita num dique constitucional às derrapagens orçamentais, é porque nada aprendeu da História recente. Chegou a hora do cretinismo constitucional da direita.