A mentira como arma
Manuel Raposo — 11 Abril 2012
Por declarações contraditórias entre membros do governo, ficámos a saber que os cortes nos subsídios de férias e de Natal se prolongarão, pelo menos, por mais um ano, e que, se forem restituídos, será “gradualmente” – contra o que sempre tinha sido dito por todos eles. A justificação dada pelo ministro das Finanças, apenas depois de ter sido apertado com as suas próprias declarações anteriores, foi a de que se tratou de “um lapso”. O que resta desta história mal contada é que todos os “lapsos” serão postos a uso pelo governo para prolongar e para agravar as medidas que penalizam o trabalho.
A mentira sempre fez parte do arsenal propagandístico das classes dominantes e dos homens do poder. Mas, nos dias que correm, a sucessão de falsidades, de embustes, de omissões corre em manancial das bocas dos governantes fazendo parte indissociável da sua acção e até do seu comportamento.
Falando apenas do caso português e dos tempos mais recentes, o descaramento de Sócrates deu matéria inesgotável a toda a comunicação, incluindo os mais néscios dos comentadores, a ponto de parecer que ninguém o bateria. Mas, já antes, as mentiras com que Durão Barroso e Paulo Portas ludibriaram a opinião pública portuguesa para justificar a guerra contra o Iraque, por exemplo, mostraram que não há limites para a burla. Agora, o rapaz bem educado que Passos Coelho afecta ser, ostentando na lapela a flor da verdade a todo o custo, mostra afinal a mesma capacidade para o uso da trapaça. Capacidade e necessidade.
É escusado insistir na crítica moral dos governantes que mentem. A mentira é uma arma indispensável da sua acção porque a distância entre os interesses das classes dominantes (que eles servem) e os interesses e direitos dos trabalhadores (de cujo voto e de cuja passividade precisam) é intransponível. Se em tempos de crescimento económico se pode ir disfarçando o roubo inerente à exploração do trabalho, numa época de falência do sistema produtivo, como a actual, salta à vista que o papel dos governos é usurpar direitos dos trabalhadores e fazer retroceder as suas condições de vida.
Mais: a incapacidade que o sistema capitalista tem revelado para sair da crise em que está mergulhado reclama sucessivas medidas, umas sobre as outras, de penalização dos assalariados. A exploração torna-se então mais evidente e isso obriga o poder a redobrar o seu esforço de falsificação da realidade.
Medidas publicitadas como excepcionais e temporárias tornam-se definitivas sem que isso alguma vez seja dito. A brutalidade e a inutilidade dos sacrifícios, que se vai tornando patente a todos os trabalhadores, é mascarada com números e declarações que criam a ilusão de melhorias próximas ou futuras. A “fé” de que as coisas hão-de melhorar – seja a da ministra da Agricultura na vinda da chuva, seja a do ministro das Finanças na ressurreição do crescimento económico – é poeira que procura esconder a evidência de um descalabro sem saída. Aquilo que é apresentado como uma necessidade ditada pela conjuntura – quebras salariais, cortes de regalias sociais, aumentos de impostos, etc. – serve na realidade para dar corpo a uma alteração na relação de forças entre o capital e o trabalho e colocar o nível de exploração dos assalariados num patamar mais elevado.
A burguesia e os homens a quem ela confia o poder precisam de esconder a exploração de que vivem e na qual assenta todo o edifício social. O capitalismo não pode dizer de si mesmo que tem por objectivo, não as necessidades sociais, mas apenas a valorização do capital. Daí a função política da mentira para o poder.