Pôr os ricos a pagar, isso é que não!

Manuel Raposo — 1 Outubro 2011

ricosepobres.jpgTem a sua graça ver como os ideólogos do capitalismo e da desigualdade de classes se esforçam por arranjar argumentos contra o, agora tão falado, imposto sobre os ricos. Há o argumento básico: “Cuidado que os ricos fogem com o dinheiro, e ainda é pior”. Mas há quem procure razões mais elaboradas. É o caso de João Carlos Espada (Público, 29 Agosto) que adopta o tom de quem vai “aos fundamentos” para chegar ao mesmo resultado: os ricos pagarem a crise, nem pensar.

A tese de JCE é esta: não é a distribuição, através de impostos, da riqueza criada que melhora a condição de vida “do maior número”, mas sim a criação de riqueza “num ambiente de liberdade económica”, sem barreiras “à entrada de novos competidores”. É a velha cartilha capitalista liberal que JCE repete: “o melhor contributo dos ‘ricos’ consiste em continuarem a produzir bens e serviços, em concorrência aberta e leal com outros, actuais ou potenciais, produtores”.

O imposto sobre os ricos

Repare-se, desde logo, como JCE foge à questão concreta colocada pela ideia do imposto, que pretende responder apenas, nos apertos que atingem o mundo capitalista, à urgência de obter mais receitas que cubram os défices dos Estados e de dar o ar de que “todos” se sacrificam pelo bem comum.

Foi isso que levou o magnata Warren Buffet, proprietário do conglomerado Berkshire Hathaway, com uma riqueza superior a 36 mil milhões de euros, a lançar a ideia; e foi também isso que levou Liliane Bettencourt, proprietária do império L’Oréal, com uma fortuna de 17 mil milhões de euros, a secundá-la.

E, nessa perspectiva estrita, o imposto sobre as grandes fortunas e sobre o património capitalista significaria uma receita imediata avultada que permitiria aos Estados, em tese, reduzir os impostos sobre os assalariados. Se isso não acontece não é porque não haja dinheiro de sobra nos bolsos dos capitalistas, como é fácil de ver – mas porque, para a classe burguesa no seu conjunto, a ideia é, por um lado, intuitivamente sentida como um precedente perigoso para a segurança das suas fortunas e, por outro lado, porque o desiderato pretendido com as medidas anti-crise é o de criar melhores condições de exploração da força de trabalho, nomeadamente através da redução do custo do trabalho (salários, prestações sociais, etc.).

A teoria que JCE expende sobre os fundamentos do funcionamento histórico do sistema capitalista é aqui um mero instrumento para dar foros de ciência a uma opção muito simples: tocar nos ricos, reduzir desigualdades – não.

O capitalismo, ontem e hoje

Mas, para além deste álibi, a argumentação de JCE tem que se lhe diga. Para JCE, tudo se resolveria, parece, se mais riqueza fosse produzida, sem obstáculos à concorrência entre capitalistas.
Com tal profissão de fé nessa “verdade elementar” revelada por Adam Smith há mais de dois séculos (JCE refere-o como se fosse a última palavra sobre o assunto), ficam omitidos factos evidentes como estes:

1) O crescimento económico capitalista, ao mesmo tempo que cria riqueza, gera desigualdades. Por isso é que há Warrens e Lilianes, de um lado, e massas cada vez maiores sem meios de vida, do outro.

2) É o facto de a concorrência entre capitais ser levada ao extremo, sem restrições, que dá origem, contraditoriamente, à concentração de capitais e aos monopólios e, portanto, à restrição da concorrência que JCE lamenta.

3) A acção conjugada do empobrecimento da massa trabalhadora (espelho das desigualdades crescentes) e do aumento exponencial da capacidade produtiva (fruto da concentração de capitais) cria um desajuste crítico entre produção a mais e consumo a menos. É esse o “segredo” da actual crise (como de outras) que se esconde por baixo dos problemas financeiros, dos défices e por aí afora. Contra o que defende JCE, não é por falta de produção que o sistema entrou em crise, mas precisamente porque produz a mais relativamente ao poder de compra dos assalariados. O sistema capitalista só pode queixar-se, portanto, de si mesmo.

4) A actual crise capitalista é verdadeiramente mundial e generalizada, o que a torna a mais grave de sempre e mostra os limites do sistema capitalista. Em vez de crescimento, o que se perspectiva é um retrocesso generalizado. Em vez de se apresentar como um “elevador social”, o sistema capitalista promete uma degradação geral das condições de vida da maioria.

Crise passageira ou histórica?

É talvez por verem a borda deste abismo que há Buffets e Lilianes a apelar à contribuição dos seus pares capitalistas, como uma medida cautelar e de emergência. Mostram ser mais lúcidos que o seu epígono JCE.

Sabemos que aquilo que propõem não resolve a questão de fundo, mas não pelos argumentos que JCE desembainha na circunstância. A crise actual tem a ver com a decadência histórica do modo de produção capitalista. O capitalismo chegou – precisamente através da liberdade e da concorrência, tão caras a JCE – a um impasse em que é a própria ideia de desenvolvimento e de progresso da humanidade que está bloqueada. Os apelos a mais produção, a mais liberdade e a mais concorrência tornam-se, assim, patéticos.

Coisa que parece escapar a JCE, o sistema capitalista de hoje está muito longe do que foi no tempo de Adam Smith ou de Ricardo, para citar dois dos grandes intérpretes da juventude do capitalismo, digamos assim. Marx referia-os aliás como cientistas clarividentes que tiveram o mérito de pôr em relevo as contradições do sistema; por contraste com os economistas do capitalismo maduro empenhados em lhe exaltar as supostas harmonias.
Passada a maturidade, o sistema mostra hoje toda a sua podridão e toda a teia de contradições em que assenta. O reaccionarismo de JCE, neste caso, não está tanto na defesa do capitalismo e do seu sistema de desigualdades – mas na defesa de um capitalismo que já nem sequer existe.


Comentários dos leitores

menvp 11/10/2011, 23:16

Votar em políticos não é passar um 'cheque em branco'!!!
O Presidente da República pode vetar uma lei... sem querer derrubar o governo!!!
Os contribuintes devem poder vetar uma despesa com a qual não concordam... sem querer derrubar o governo!!!
Democracia verdadeira, já!
Leia-se: DIREITO AO VETO de quem paga (vulgo contribuinte):
- blog fim-da-cidadania-infantil.
{um ex: a nacionalização do negócio 'madoffiano' BPN nunca se realizaria: seria vetada pelo contribuinte!}


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