Crise e decadência da burguesia

António Louçã — 27 Setembro 2011

g20-protests.jpgUma das características deste túnel é a de não se lhe ver luz alguma no fundo. Os muito crédulos consolam-se ainda com a ideia de que tantos crânios reunidos em cimeiras – G-7, G-20, FMI, BCE, eurocratas – alguma solução devem ter na manga. Mas também os muito crédulos precisam de acreditar em algo que ninguém vê – nem eles. Para nós, muito descrentes nos sábios burgueses, as soluções não se vêem porque não existem: é sempre difícil encontrar um gato numa sala às escuras, principalmente quando nenhum gato lá está.

Houve um tempo em que a burguesia, classe ascendente, tinha soluções. Até ao século XIX, essa classe ascendente dependia da Revolução Industrial e do crescimento económico. Nas metrópoles imperialistas, fazia bons negócios, e ao mesmo tempo criava uma margem de prosperidade que o proletariado nascente podia usar para impor as suas reivindicações.

Embora não desse a ninguém nada de bandeja, essa burguesia, pressionada por reivindicações surgidas na luta de classes, podia encontrar soluções geradoras de consensos – para si própria e para uma parte considerável da sociedade. Ela, que conhecera e conhecia ainda os métodos da acumulação primitiva mais bárbara e genocida, que dizimara povos inteiros noutros continentes, também conhecia as vantagens de aquietar os seus compatriotas proletários mediante concessões.

Capitalismo decadente, mas com soluções engenhosas

Com a aproximação da Primeira Guerra Mundial, passou a pressentir-se uma mudança qualitativa nesta realidade. Lenine classificou o imperialismo como “estádio supremo do capitalismo”. Rosa Luxemburgo retomou, como coisa actual, o dilema “socialismo ou barbárie”. As revoluções desencadeadas com o final da Guerra confirmaram que o socialismo estava na ordem do dia e os movimentos fascistas dos anos 20 mostraram que a barbárie era uma alternativa ainda mais próxima. Fora dessa dicotomia, continuavam a viver democracias burguesas com alguma aparente estabilidade, até a sua estabilidade se ver dramaticamente abalada com a crise de 1929.

Mas o “crepúsculo dos deuses” que a bancarrota de Wall Street parecia anunciar não se confirmou. O ultra-esquerdismo, que lia esquematicamente Lenine para pensar que o “estádio supremo” chegava ao fim, teve de assistir à aplicação de soluções burguesas como foram, essencialmente, o New Deal nos Estados Unidos e novas fórmulas fascistas ou proto-fascistas na Europa, com especial destaque para a Alemanha. Claro que a “paz social” dos fascismos só podia ser a paz dos cemitérios, com uma repressão brutal sobre o movimento operário, e com uma dinamização viciada da economia, que criava postos de trabalho dependentes do rearmamento.

E depois da guerra voltou a parecer que, ao menos na Europa, o movimento operário faria pagar às suas burguesias a hecatombe para onde arrastara milhões de pessoas. Mas tão-pouco dessa vez se confirmou a iminência da “luta final”. A burguesia soube fazer participar a classe operária num “boom” económico resultante da reconstrução do pós-guerra. As políticas preconizadas por John Maynard Keynes tiveram aí a sua maior voga. A ampliação da segurança social era um pilar essencial dos “Estados-providência”.

Governos de lacaios

Terá a burguesia de hoje algumas soluções na manga como as que encontrou à saída das duas guerras e da crise económica de 1929? Terá ela, na sua sala escura, algum gato que desconhecemos? Vários factores sublinham a originalidade dos nossos tempos face a esses antecedentes históricos, sendo o mais destacado a degradação das direcções políticas da burguesia. No século XX houve dirigentes burgueses capazes de tomarem decisões: Roosevelt teve de bater uma forte oposição interna para impor o New Deal e travou uma luta surda e prolongada contra os isolacionistas para entrar na guerra. Churchill travou uma luta ruidosa e prolongada contra os apaziguadores. De Gaulle lançou a sua voz quase solitária contra os colaboracionistas de Vichy e fez uma árdua travessia do deserto. Do outro lado, os traços psicopáticos da personalidade de Hitler e os traços histriónicos da personalidade de Mussolini não os impediam de meter na ordem qualquer burguês recalcitrante. Para salvarem a burguesia toda, não hesitavam em impor decisões contra a vontade de uma parte.

Hoje, pelo contrário, vemos um Obama que cede constantemente a grupos de pressão e não se impõe nunca a nenhum deles. Diziam alguns que a sua eleição tinha sido a vitória da Microsoft sobre a Halliburton e sobre Wall Street. Já esta definição era curiosa, porque revela uma visão da presidência dos EUA, não como instância de síntese dos interesses globais da burguesia, e sim como serventuária, alternadamente, de um ou de outro lobby. É verdade que, sob a presidência de Bush, foram tomadas decisões a mando da indústria petrolífera que só podiam conduzir, como sucedeu, os interesses globais do imperialismo ianque a um beco de difícil saída. E, nesse sentido, a presidência foi serventuária de um lobby.

Obama tentou encontrar uma saída e seria injusto dizer que o fazia a mando da Microsoft. Mas tentou encontrá-la numa posição de fraqueza e acabou por tornar-se um espectáculo de sucessivas capitulações a lobbies contraditórios, incluindo aqueles mesmos que era suposto substituir no poder. Assim, após a crise do subprime, entregou a Wall Street 700 biliões de dólares, que alguns banqueiros festejaram, como dádiva inesperada, em banquetes opulentos. Cedeu aos republicanos no braço de ferro sobre os tectos da dívida. Cedeu aos interesses da Halliburton adiando a retirada do Iraque por mais tempo do que tinha prometido. Cedeu em toda a linha ao lobby sionista, apoiando incondicionalmente o Governo israelita de extrema-direita. Cancelou mesmo promessas que pareciam de cumprimento relativamente simples, como a de encerrar Guantánamo. E não falemos das promessas que nem se atreveu a fazer: a de acabar com a pena de morte nos EUA, e com o flagelo que ela representa para cidadãos negros, como Troy Davis, condenados para lá de qualquer dúvida razoável e executados com requintes de crueldade.

A degradação das direcções burguesas não é um problema geracional: não se trata de a humanidade do século XX produzir gigantes políticos, ou psicopatas de estatura histórica, e a do século XXI apenas engendrar anões e lacaios. Em todas as épocas a humanidade produziu grandes figuras e lacaios. A diferença é que hoje a burguesia só quer lacaios à frente do Estado.

O que há aí para lhes confiar passou a ser muito menos. Decide-se hoje menos nas instâncias estatais do que antes. Uma multinacional importante pode ter um orçamento superior ao de um Estado de mediana dimensão. Mesmo um Estado como o norte-americano tem uma capacidade de intervenção económica muito inferior ao que tinha o do tempo de Roosevelt. Há quem leve o paradoxo ao ponto de afirmar – com exagero, mas também com premonição – que se tomam mais decisões importantes no Conselho de Administração da General Motors do que na Casa Branca.

Depois de vários anos a aligeirar a carga fiscal dos ricos, o Estado dos principais países tornou-se quase tão sombra de si mesmo como o Estado de países marginais. Incapaz de lançar um New Deal ou um Plano Marshall, resta-lhe preparar-se para uma hecatombe social com os meios da repressão. Porque, isso, o Estado ainda poderá fazer: é mais barato armar até aos dentes a guarda pretoriana do capital do que relançar a economia com um vasto programa de investimento público. O Estado-providência dá cada vez mais lugar ao Estado-polícia, as visões de conjunto sobre os interesses da burguesia darão cada vez mais lugar à lobbycracia, e os políticos burgueses serão, cada vez mais, substituídos por simples lacaios.


Comentários dos leitores

José Manuel Lopes Cordeiro 15/10/2011, 14:19

Até que enfim uma análise marxista da realidade ! Parabéns ao António Louçã.


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