Um longo lastro de razões para a greve geral
Quem vive "acima das nossas posses" e por que motivo os sacrifícios não são para todos?
Urbano de Campos — 22 Novembro 2010
De repente, alguém inventou que “vivemos acima das nossas posses” e que se torna por isso “urgente fazer sacrifícios” – e a ideia fez carreira. Os destinatários exclusivos destas mensagens são os trabalhadores, a quem se exige mais produção com menores salários e menor consumo – para que as empresas, diz-se, sejam mais “competitivas” e possam “de futuro”, assim se promete, criar novos empregos.
Tudo isto assenta numa mentira: o capitalismo está em crise porque não consegue vender tudo o que produz; a competição entre capitais aumenta por isso mesmo, levando as empresas a quererem lucrar mais com menos gastos e com menos mão-de-obra, agora e no futuro. O fito das políticas de “sacrifícios” é, pois, o de embaratecer à bruta a força de trabalho e o seu resultado é o empobrecimento da massa trabalhadora assalariada.
Afinal, quem vive acima das nossas posses e onde está a razão de os sacrifícios não serem para todos? Os números e alguns factos de política falam por si.
Quem paga
As medidas conjuntas dos PEC e do Orçamento do Estado conseguem obter (no somatório de receitas a mais e despesas a menos, e segundo os valores conhecidos) perto de 12 mil milhões de euros.
Mas, na repartição desse valor, 66% são pagos pelos trabalhadores ou pela população em geral (cortes de salários, congelamento de pensões, reduções sociais, aumento do IVA); 20% provêm da redução do investimento público e de cortes nas despesas com a máquina do Estado; e 14%, apenas, provêm de encargos que recaem sobre investidores (mais valias), empresas e banca, e de impostos sobre rendimentos elevados.
Sacrifícios “iguais para todos”? Incompetência? Não, trata-se de uma política deliberada para sacrificar a massa trabalhadora e proteger o mais possível os detentores de capital e as classes dominantes.
“Urgência”
Argumenta-se também com a “urgência” da situação e com a necessidade de ir buscar rapidamente receita ao maior número de pessoas para pagar a dívida pública e o défice do Estado. É também um falso argumento porque seria ainda mais rápido, e de resultados garantidos, taxar fortemente as fortunas, os elevados rendimentos e os ganhos do capital.
Mas acresce que, mesmo sem isso, a história recente da cobrança de impostos (que é outra maneira de canalizar a riqueza produzida) desmente essa necessidade agora classificada de “urgente”. Basta atentar na quase completa ausência de tributação sobre a riqueza e nos números escandalosos da fuga ao fisco.
Milhões de fuga os fisco
A maior parte da riqueza patrimonial não é taxada ou é-o por valores desactualizados. Uma tentativa de reforma da tributação do património mobiliário e imobiliário foi metida na gaveta em 1996 por António Guterres porque, simplesmente, não convinha aos proprietários. Desde então, ninguém mais tratou do assunto.
A contribuição para o IRS é quase exclusivamente suportada pelos trabalhadores assalariados (92%) contra uma ninharia (8%) paga por independentes, agricultores, industriais, comerciantes, senhorios e detentores de capitais. Esta desproporção tem vindo a acentuar-se já que em 1996 se cifrava em 86% contra 14%.
A maior parte das empresas não paga IRC, sem que o Estado tome medidas contra isso. Em 1994 havia 200 mil empresas e só um terço delas pagava IRC. Em 2007 existiam 379 mil empresas e apenas 36% pagavam IRC. E uma parcela crescente desse IRC recai, ano após ano, sobre as empresas de menor facturação.
Esta fuga do capital ao pagamento de impostos – sistemática, instituída e tolerada – faz com que o valor de imposto que o Estado não recebeu desde 1989 até 2007, somasse perto de 132 mil milhões de euros, mais de 11 vezes aquilo que as actuais medidas de “contenção” (tornadas “urgentes”) visam arrecadar.
Medidas inconvenientes
Igualmente, outras medidas que poderiam travar o caminho a esta fuga fiscal nunca foram postas em prática.
Os sinais exteriores de riqueza (barcos, aviões, etc.) não são taxados.
Também os métodos indiciários (aventados em 1996 e que permitiriam avaliar o volume de negócios de uma empresa que omitisse facturação) nunca foram aplicados por pressão dos empresários capitalistas.
De novo: incompetência? sacrifícios “para todos”?
Os factos apontados mostram que, desde sempre, temos sofrido as consequências de uma política destinada a defender as classes dominantes. Há, portanto, um largo lastro de razões para que os trabalhadores se unam numa oposição maciça às medidas de austeridade, agora apresentadas pelo poder e pelos patrões como inevitáveis e irrecusáveis. Que a greve geral de dia 24 seja um importante passo nesse sentido.