NATO não!
A estratégia da aranha
Para perceber o que se vai passar na cimeira da NATO em Lisboa
Paulo Esperança — 18 Novembro 2010
O novo conceito estratégico da NATO – a debater e aprovar hoje e amanhã, na Cimeira de Lisboa – foi apresentado em 17 de Maio deste ano por um grupo de doze especialistas liderado pela ex-secretária de Estado de Bill Clinton, Madeleine Albright (1), membro do “clandestino” Grupo de Bildeberg e da Trilateral.
O último modelo estratégico da Nato remonta a 1999, ou seja, antes da “campanha” do Afeganistão, da invasão do Iraque em Março de 2003, dos ataques aos EUA em 11 de Setembro de 2001, de todo o desenvolvimento social que tem gerado mudanças de “cor política” na América Latina, da afirmação do Irão, da instabilidade latente em várias ex-repúblicas da antiga União Soviética.
A definição do novo conceito estratégico da NATO estará claramente influenciada pela “actualização” que, sob a administração Obama, os EUA produziram relativamente ao seu próprio conceito estratégico. O anterior estabelecia que as forças armadas dos EUA deveriam estar aptas a disputar vitoriosamente duas guerras simultâneas (perderam as duas em que se envolveram, Iraque e Afeganistão). O actual estabelece que devem estar aptas a disputar uma multiplicidade de ameaças em qualquer parte do mundo e que, para isso, devem contar com as parcerias estratégicas – UE, ONU, etc.
Do que se vai sabendo e do que se pode inferir do texto divulgado pela equipa de Albright (2), Lisboa debruçar-se-á sobre as seguintes decisões.
Armas nucleares
As armas nucleares devem ser encaradas como uma necessidade imperiosa para a chamada “política de dissuasão”.
“Nós temos uma ameaça real. E precisamos de uma defesa real contra essa ameaça real”, diz o relatório preliminar que, pela voz do secretário-geral da Nato Anders Rasmussen, cita claramente os “mísseis de longo alcance do estado iraniano”.
Prevê-se pois a rejeição inequívoca das propostas de “alguns” países (não expressamente referidos, supondo-se que se situem na região nórdica) para remoção de armas nucleares.
Escudo antimíssil
Os planos dos EUA de criação de um escudo antimíssil implicarão a “transferência” desse dispositivo para o âmbito da NATO, mediante a respectiva trasladação para o continente europeu.
O custo deverá ser pago por todos os estados membros, que são desafiados a aumentarem os seus esforços económicos na área da defesa. Ainda que sejam reconhecidas as dificuldades actuais é recomendado que os respectivos orçamentos sejam “generosos” neste “grande esforço” para dotar a NATO de novos meios para a “concretização dos seus novos desafios”.
Este escudo antimíssil foi projectado para ser montado na Polónia e Republica Checa – como constava da proposta inicial de Maio. O “medo” do Irão obrigou a que a Conferência de Lisboa venha a aprovar a sua instalação em terra, na Roménia, e no mar, em navios que vão patrulhar o Mar Negro. Mais perto do”perigo iraniano” e da Turquia, membro da NATO que, apesar de tudo, já declarou ter relutância em albergar um sistema deste tipo apontado ao Irão.
Parcerias e alargamento
A Cimeira propõe-se abrir um novo capítulo no que toca a parcerias e alargamento da organização.
A criação do sistema de defesa antimísseis “será acompanhada de um convite à Rússia, para cooperar connosco”, disse Rasmussen, depois da reunião com o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Serguei Lavrov.
Rasmussen propôs a criação de um fundo bilateral constituído e gerido pela Rússia e a Aliança Atlântica para treino de pilotos e manutenção de helicópteros com que Moscovo tenciona equipar as tropas afegãs.
Prova deste entendimento será a presença em Lisboa do presidente russo para mais uma sessão do Conselho Nato/Rússia. “Nos últimos tempos, as relações entre a Rússia e a NATO tornaram-se mais produtivas, mais substanciais”, disse Medvedev.
A Geórgia, de acordo com a decisão tomada em 2008 na cimeira de Bucareste, tornar-se-á membro da NATO “mas não para já”, segundo Rasmussen. Reiterou, no entanto, contra o que defende a Rússia, que a Nato “apoia a integridade territorial da Geórgia não reconhecendo a independência da Ossétia do Sul e da Abcázia”.
Apesar de mais cautelosamente do que em documentos anteriores, é formulado um novo alargamento a Leste. Isto inclui nove parcerias com as antigas repúblicas soviéticas da Ásia Central (Tadjiquistão, Quirguistão, Uzbequistão, Turcomenistão, etc.), assim como com potências regionais asiáticas (Indonésia, Malásia, Austrália, Nova Zelândia) incluindo o Japão, que mantém um conflito territorial com a Rússia, em torno das ilhas Curilhas.
Ou seja, ao mesmo tempo que enfatiza o seu carácter regional, a NATO trata de ampliar a sua capacidade de intervenção e a sua estratégia de expansão global.
É de assinalar que as aproximações de “charme” à Rússia têm um interlocutor privilegiado: a Alemanha da sra. Merkel, que não perde de vista o seu interesse no abastecimento energético que lhe chega de Moscovo.
O atoleiro afegão
Uma parte da Europa não afina totalmente pelo mesmo diapasão dos EUA acerca da guerra no Afeganistão. Como escreveu o relator especial da Assembleia Parlamentar da NATO, o norueguês Jan Peterson, “os desafios estratégicos que enfrentamos não podem ser resolvidos através de soluções puramente militares. Assistimos a isso no Afeganistão, onde os aspectos militares são uma componente necessária mas insuficiente para uma solução abrangente”.
Apesar disso, a guerra no Afeganistão é vista como um desafio crucial para a Nato que, por isso, “tem que ser ganha” como exemplo da luta contra o “terrorismo”. Ora, isso tem de implicar um cada vez maior envolvimento civil e militar por parte dos países da Aliança, como pretendem os EUA.
Polícia do mundo
A NATO afirma que “não quer actuar como polícia do mundo”, mas quer ter poder de acção unilateral sempre que os interesses dos seus estados membros estejam “em perigo”. Isto inclui a possibilidade de intervir em quaisquer países e regiões do mundo de molde a garantir o domínio sobre recursos naturais ou rotas comerciais “sempre que necessário, para prevenir qualquer hipótese de ataque à área de acordo ou para proteger direitos legais e outros interesses vitais dos membros da aliança”, disse, de novo, Rasmussen.
Os conceitos de defesa e de segurança, que sempre estiveram separados, vão fundir-se. O princípio adoptado por George Bush da “legítima defesa preventiva”, que presidiu à invasão do Iraque em 2003, vai ser expressamente colocado na “letra da lei”.
A NATO poderá, assim, invadir qualquer país no mundo que não aja de acordo com as “directivas” e interesses do “mundo ocidental”, bem como utilizar a força militar para pôr cobro a situações de agitação social, em qualquer local do planeta, nomeadamente dentro dos países da própria aliança.
“Outros desafios”
A NATO adoptará um novo papel de guardião no processo das alterações climáticas o que, indefinidamente, é designado por “outros desafios globais” – mas aqui, devido aos hipotéticos custos, assumindo o seu carácter de “aliança regional”. A forma para solucionar o eventual surgimento destes problemas é vaga recomendando-se que seja vista “caso a caso”.
A NATO arvora-se também no direito de declarar guerra à ”pirataria” electrónica, prevendo a possibilidade de reagir a ataques à comunicação, computadores, redes de energia – ou seja, organizar uma polícia de vigilância informática mundial.
À margem do direito internacional
A cimeira de Lisboa assinará, em suma, um documento em que, sem sofismas, se assume que, para todas as situações enunciadas, a Aliança Atlântica deverá agir “ sempre que possível”, “de forma legal e com o apoio da opinião pública”, o que significa que o contrário também será exequível. Será assim feita tábua rasa da Carta da ONU e dos direitos de cada país e de cada povo nela consignados.
A União Europeia será a “mão direita” da NATO, com quem partilhará encargos e responsabilidades. Pela primeira vez é considerada “parceira estratégica” sem que, no entanto, seja especificado qual o posicionamento dos dois países que não integram a NATO (Finlândia e Irlanda) ou como se acautelarão os interesses dos quatro países da UE oficialmente neutros – Áustria, Suécia, Irlanda e Finlândia.
As divergências que possam manifestar-se entre a União Europeia e os Estados Unidos serão marginais. É bem possível que, por pressão dos EUA secundada pelo secretário-geral Rasmussen, seja reforçado o artigo 5.º do Tratado de Washington (quando a NATO foi formada em 1949) que estabelece, prioritariamente, o princípio segundo o qual, todos os países membros “deverão agir” de modo solidário em caso de “agressão” a um deles.
Os dados estão lançados. A “cidade branca” – Lisboa – ficará indelevelmente ligada ao patrocínio de uma resolução que significará um reforço da associação entre os dois principais blocos imperialistas do mundo actual.
(1) Albright defendeu intervenção da NATO no Kosovo em 1999 e, mais tarde, apesar de uma posição crítica acerca da política de Bush, desdobrou-se em acções de propaganda em que defendia, tanto para o Iraque como para o Afeganistão, que “não se poderia perder a guerra”.
(2) NATO 2020 – Assured Security Dynamic Engagement – analisys and recomendations of de group of experts on a news strategic concept for NATO.