O lado explosivo da questão

Manuel Raposo — 20 Outubro 2010

mineros-chilenos.jpgTodos quiseram tirar proveito do drama dos mineiros chilenos. O presidente Piñera, com a fanfarra da “unidade nacional” (em torno dele, claro), forma de deixar na sombra a bandalheira permitida aos patrões da mina que foi o factor responsável pela situação. A agência espacial norte-americana, a NASA, porque forneceu a “tecnologia espacial”, ganhando com isso uma face de “utilidade pública”. O Papa, arvorando o “milagre” sem o qual o salvamento ficaria sem explicação, esquecendo por que motivo a acção divina não impediu a derrocada nem obrigou os patrões chilenos a cumprir regras de segurança.

Também os inevitáveis psicólogos de serviço à comunicação social entraram em cena valorizando a “liderança” e a “ordem” impostas pelos chefes para manter a turba disciplinada e obediente, pronta a ser salva por quem sabe. E até Paulo Portas e o presidente do Benfica vieram perorar sobre o “exemplo”, o “querer”, a “luta pela vida” e outras vacuidades só para poderem aparecer nas televisões.

As conversas destes aproveitadores mascaram o que foi decisivo: a disciplina e a organização dos próprios mineiros, assumidas espontaneamente no pior momento, que lhes deram força para resistirem até à altura de poderem ser socorridos. Foi esta a chave da sobrevivência dos 33 operários.

Antes de os salvadores (da superfície ou dos céus…) terem feito qualquer coisa, os 33 mineiros sobreviveram por sua conta, sem nenhum contacto, durante 17 dias, desde a derrocada que os soterrou a 5 de Agosto até 22 de Agosto, quando o contacto foi estabelecido.
Resistiram organizando-se e disciplinando-se eles próprios: racionaram a comida e a água comendo apenas de dois em dois dias; mantiveram-se activos; decidiram em grupo o que fazer. O chefe de turno (investido pelos comentadores no papel de “líder”) disse, depois de salvo, que as decisões eram tomadas em colectivo e por maioria; e revelou que chegaram a reunir duas e três vezes por dia quando era preciso sanar diferendos.

Mas como isto é inconveniente e não vende, há órgãos de comunicação social que procuram comprar “revelações” e, se possível, “escândalos”. Uma jornalistazinha do Público chegou a questionar se teria passado pela cabeça dos mineiros praticar… canibalismo!
Se quisesse ser séria, a comunicação social tinha pano para mangas pelo menos em duas coisas, só noticiadas de raspão: a recusa dos patrões da mina em deixar sair os 33 mineiros quando eles alertaram, poucas horas antes da derrocada, que algo estava a correr mal e pediram para sair; e o desplante desses mesmos patrões, tolerado pelo governo chileno do senhor Piñera, de deixar de pagar salários, deixando mineiros e famílias à sua sorte, com a justificação de que a paragem do trabalho e o desastre tinham tornado a mina não lucrativa.

A tenacidade auto-assumida pelos 33 mineiros, o seu genuíno sentido de igualdade, a rigorosa democraticidade que fundamentou as suas decisões colectivas – é isso que o poder e os seus adeptos não querem que passe para a massa, para os milhões de trabalhadores chilenos e do mundo inteiro. É esse o lado explosivo da experiência vivida pelos 33 operários de San José.


Comentários dos leitores

UM GENUÍNO SENTIDO DE IGUALDADE, UMA RIGOROSA DEMOCRATICIDADE « OLHE QUE NÃO 23/10/2010, 14:20

[...] O lado explosivo da questão. Com a devida vénia a Manuel Raposo. [...]


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